Nenúfares

Nenúfares
Monet

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Novigalhas


     Um certo Cristóvão morava não muito longe daqui, numa cidade pequena de terra inteira branca, quase areia. Ela toda parecia um holofote, vista de longe, com o sol a pino. Cercada por vales, cachoeiras e muitas, muitas cavernas. Construída sobre rochas sedimentares, caduca e revelhusca, com centenas de anos.     
     Antigalha a gente de lá. Nosso homem também. Era carunchoso nas idéias. Defendia obstinado a manutenção dos costumes, cultivando uma exacerbada macheza, de que muito se envaidecia. Mulher tinha que cuidar da casa, ir à igreja, usar roupas discretas. Cuidadoso no trabalho. Não ultrapassava a velocidade permitida, sempre usou cinto de segurança, nunca carregou excesso de carga em seu caminhão. Homem parrudo. Os músculos dos braços saltavam da manga curta da camisa. Caminhava com o peito estufado, ombro ereto. O eterno sorriso de satisfação desenhara rugas em torno dos olhos claros.
     Carmosa, sua mulher, parecia um poema de antíteses. A singeleza vertia dos olhos negros e a luxúria dos lábios carnosos. O andar macio e silencioso, o corpo esbelto gingava ritmado, povoando as fantasias dos homens. O pescoço longo sempre lhe deu uma aparência altiva, alheia à reverência masculina e à inveja das mulheres. Zelante e zelosa de suas obrigações domésticas, mas enfastiada de tédio. Não que não gostasse do marido. Gostava e muito. Porém, sua vida era tecer a espera. O companheiro sempre nos longes, arredado de seus olhos. Naquela cidade e tempo, mulher nunca trabalhou fora de casa. Escrevia desastrados sonhos, em um diário, momento em que fugia da vigilância alheia.
     Doía morar naquele fim de mundo, onde o vento rumorejava de tanta melancolia. O pavor desmesurado da solidão foi, pouco a pouco, cavando túneis em sua determinação de mulher honesta. O terreno movediço cederia a qualquer instante.
     Foi então que aconteceu o inevitável. Doutor Alcides enfeitiçou-se por ela, que nada fez, senão existir. Domingo e missa. Dia em que a viu pela primeira vez, tão linda e pudica. Entrava na igreja acompanhada por Cristóvão. Carmosa varria, para os subterrâneos da memória, o sentimento de solidão. A presença viril do marido cedia-lhe, temporariamente, a fiúza para deslizar como uma bailarina, com graça e finura. O doutor olhou-a tanto, que seu mirar fez estrondo dentro dela. Ensimesmou-se. Corada, abaixou as longas pestanas.
     O homem era acostumado ao mando, porém, vivia vida pacata, naquele avelhado lugarejo, onde o tédio fazia sombra ao poder. Casado há 20 anos com Maria Antonieta, tinha dois filhos: um moço e uma moça. Carmosa foi uma lufada de juventude, que reboliçou seu desejo então domesticado. Ficou obcecado por ela, perdeu o sono, a concentração. Queria tê-la. Não demorou a saber que Cristóvão vivia ausente, a maior parte do tempo. Era a fome de leão à vista da caça vulnerável.
     Para o afoito desejo, toda ligeireza é pouca. Uma semana depois, a assombrada vizinhança presenciou a chegada de um carro incomum à casa de Carmosa. Mas como? O marido ausente!Quem seria o homem encabritado que bateu à porta? O escuro interior da sala engoliu o inusitado visitante. Descautelosos, amaram-se à luz azul do entardecer. Esse foi apenas o primeiro dia de um sempiterno caso de amor.
     Quando Cristóvão retornou, pululavam maledicências, na pequena cidade. Carmosa não o esperava com o costumeiro sorriso. Cama desfeita, louça por lavar, quintal forrado de folhas. Experimentou um calafrio e uma dor aguda na boca do estômago. A casa oca e calada fez eco dentro dele.
     Havia festa do santo padroeiro. As barraquinhas coloridas pontilhavam de alegria a praça central. Ela faz sua novena, tranquilizou-se. Enquanto se barbeava, antegozou o olhar brando de Carmosa e sua boca ávida, o molhado sorriso que ela lhe oferecia, quando pega de surpresa. Arquejava, nos ansiosos passos. Mas encontrou-a, desconhecida essência, de braços dados com Doutor Alcides e sua esposa, Maria Antonieta.   Os três, foco do sorriso irônico das beatas.

Teresa Magalhães

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