Nenúfares

Nenúfares
Monet

domingo, 28 de novembro de 2010

Querências


Luzídio. Assim se chamava o moço, nascido e criado no sertão mineiro, à beira do Rio São Francisco. Nunca desarredou-se dali. Era 1940, época de permanecer entre aindas e crendinices.  Vivia de lapidar a cinzel na pedra sabão - artista nato. Desconhecia as letras, porém sabia ler a maciez dos corpos cravados nas rochas. Luzente no sorriso branco, na pele lisa e jovem. Quieto, generoso com os miseráveis. A sua oficina ficava ao pé de uma encosta, lugar de difícil acesso. Para se chegar ali só a cavalo ou a pé. Mesmo assim, raramente passava um dia sem que houvesse visitas ilustres.  Dos pobres, cobrava não.
- Seo Luzídio, quero encomendar uma santa do tamanho de gente graúda, lustrosa, pra cumprir promessa à Senhora de Todas as Graças, só que não tenho dinheiro não sinhô.
-Se apêie, Belermino,  se é por milagre, custa nada não.
 Um palrear aqui , outro acolá ou longos minutos de demoras. Por fim, as horas tombavam na tarde mineira. Depois do trabalho, tinha uma única destinação: levar uma rubra flor para Emiliana, a bem-amada. Era uma Dahlia coccínea, cultivada em estufa, rara na região. O dia era rodeamento do tempo, para estar perto-dela, no valioso fugidio de um minuto. Ia ávido. Depositava a rosa na janela e partia para casa. Costumaz, contumaz. Tão costumeiro hábito que recebeu o epíteto: ‘o moço da dália’.
A jovem preparava gracioso enxoval, costurado por dona Almerinda, portuguesa de mãos lindas, conhecedora de muitos feitiços. Luzídio e Emiliana estavam de casamento tremarcado. Iam viver numa casinha talhada na pedra, feita por ele. Mimo de artesão. A vida, um-só-aguardamento. Do nascedouro até então, morava com o pai e a mãe, já velhinhos, e o irmão – Ostrócio – que era aluado e sabia encantar os lambaris do riacho. Vieram ao mundo muito próximos um do outro, diferença de 11 meses. Desde a meninice, Ostrócio era misterioso, tinha olheiras arroxeadas que lhe davam feição de velhinho. A pele muito branca mostrava o mapeamento das veias azuis. O coração batia tão forte que a circunvizinhança escutava o tum-tum. Fugia ao convívio comum, sabia acalmar as crianças que tinham que ser chupadas por sanguessugas, prática antiga de abaixar a febre terçã.
Luzídio via as estranhezas por dentro. Desimportava. Quando eram crianças, o pai ficou desempregado. Vivia acabrunhado e resmungante. Para ver o sorriso nos olhos dele, o milagreiro enchia a despensa do casebre com deliciosas iguarias. Bastava apertar bem o pensamento focalizado no desejo, ele se realizava. O artista sabia que o irmão não era deste mundo, respeitava suas esquisitices. Também era silencioso e sua excentricidade preocupava a mãe. Desde a pequeninice, vivia enfiando as mãos na terra, caveava, revolvia-a, separava os seixos com cuidado, amassava-a como se fosse fazer pão. Depois de obter uma consistência pastosa, modelava coisas nunca vistas neste planeta.  O que fiz, meu Deus, pra ter duas crianças tão estranhas, redizia a mãe.
Cresceram assim, de insólito modo.
A uma semana do casório, Luzídio, na sofreguidão de levar a Dália para a noiva, atravessou o rio para recortar caminho, molhando-se inteiro. A água estava enfeitiçada. Como em um ritual religioso, passou na casa da noiva, que esperava ansiosa por ele e a dália. Ao ouvir passos, ela correu à janela. Nem deu tempo de tirar o vestido de noiva que experimentava. Hoje quero falar com ele, antes que se vá. Tinham os olhos úmidos, os dois, brilhantes como o nome dele. Lanterna que Deus acende dentro dos amantes.
-Emiliana, minha flô.
- Luzídio, luz da minha vida.
Ele se assombrou quando botou tento na belezura da moça. A tarde se vestiu de noite ao notar que ela trajava o vestido branco. Ó, vale dos azares!
- Emiliana...
- O quê, o quê? Ela ainda sorria.
- Não podia vê vossa mercê com a vestimenta do grande dia.
O sorriso dela fugiu como a presa correndo do predador. Tenha medo não, nada vai nos separar, fingia confiança. A voz eivada de tremura. Vá, vá antes que anoiteça, a chuva se esconde atrás da primeira montanha. Ficarei contando os segundos para vê ocê de novo.
Ele partiu. Chegou a casa pálido, os olhos baços. Ostrócio anteviu a estranhez. Queria despersuadir-se do fatalismo, mas agosto é mês de desgosto, e estavam na metade de um. Sobretudo, acordara com o canal premonitório afiado. Mau agouro. Naquela noite, Emiliana teve sonhos ruins. Reviravoltava-se entre o lençol e o escuro. Nébulas e trevas. O amanhecer pariu um dia chuvoso. Chorante. Malvadez do destino?As linhas tortas na escritura borrada. É, é. Uma febre ruim pegou Luzídio de jeito. Sangrava pelos poros e, em poucas horas, perdera a consciência. Foi correria, benzeção, choradeira. Inconformismo. Pedro e Tião da  Tonha saíram cedo para trazer o doutor. O Ford 29 encalhou.
Não era pra ser.
Ostrócio, que veio a Terra milagrar, nada pôde fazer. Dona Almerinda tentou todas as razões e emoções para justificar a dessabença das feitiçarias que apregoava. Luzídio, exangue, foi levado pelos anjos e arcanjos. Leve como devem ser os artistas. A tarde caía, sol e chuva renitente. Emiliana, viúva sem-véu. Tanto chorou, que o rio transbordou. Contam os vizinhos que ela nunca se casou e que, toda tarde, à mesma hora da visita diária, há uma dália afogueada em sua janela.
                                                                     
              Teresa Magalhães

                      

    



terça-feira, 9 de novembro de 2010

O pulo do gato

Capturado e captura. O gato, o rato, o pássaro.- Mas onde o rato?- Na pulsação inconsciente da ratoeira que espreita. Ela tem olhos verdes e azedos que brilham no cinza-escuro metálico. Espiona o rato ausente, que fareja o olho, que tem medo do gato. É de metal o bico do pássaro.As asas de plástico ritmosas sustentam o vôo. A vida em suspense. São leves demais para a pesada tarefa de carregar seu corpo de ferro. É feito de carne e pêlo e fome o larápio. Prepara o pulo. O gato.

Teresa Magalhães

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Bandeira, com sua licença


Foto de Adriana Gragnani

Vi ontem um mendigo
À sombra de uma sibipiruna,
Entre ruídos urbanos,
Aconchegado em cama de pedra

O mendigo não era um homem,
O mendigo não era uma mulher.
O mendigo, meu Deus, era um cão!

Teresa Magalhães