Nenúfares

Nenúfares
Monet

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Magnólia

Magnólia nasceu velha. A noite escura e chuvosa camuflou o susto da família que esperava o choro do bebê. Ventava muito. Ninguém nada não dizia com som de voz. O pensamento boiava obscuro. A mãe, renitente, olhava as mãozinhas trincadas, os lábios desenhando o formato côncavo da boca, o narizinho afilado e adunco, perdido entre rugas. O nome de flor – Magnólia -era uma aragem de esperança de que a garotinha florescesse vistosa e perfumada, nem que pelo ligeiro tempo das plantas. Pois. A amarfanhez da pele logo se dissolveu. Desencrespou primeiro o rosto, onde salientavam as bochechas rosadas e os olhos muito redondos, trigosos. Rejuvenescia à medida em que medrava.
A casa em que moravam era simples e ampla. Arejada. O mobiliário rústico de madeira escura, a louça branca, as toalhas muito claras e engomadas quebravam a austeridade do ambiente. Localizada no Arraial da Conceição, lugarejo remansado, onde mero trinado de passarinho era o bastante para quebrar a monotonia. A notícia do nascimento de Magnólia se espalhou velozmente. As primeiras visitas foram atraídas pela insólita novidade: o bebê velhinho. Os que vieram depois, pasmaram-se com o frescor de sua pele, e atribuíam ao zelo materno o rejuvenescer da criança. Era extremosa a dona Leda. Rica em minúcias, esmerava-se nos detalhes. E o perfume? O espaço foi dominado por uma fragrância suave e agradável, que atravessava as janelas e alcançava a rua. Ganhou fama.
Era a vez das felicidades. Quando a Lua rebrilhava no quintal, o verde ondeava ao vento e levava os perfumes, sobrevoava a horta e pasto e campo e o rocio da madrugada. A noite, se fazendo dia, esparramava o júbilo da casa. A alegria e os matizes aromáticos. A família rememorava antigos pais passados que partiram. A herdade ficou no sangue e no correr da língua da trisneta. Assim foi. Magnólia vicejou cheirosa e falante. Trazia do fundo do íntimo o legado da trisavó. Solfejava no campanário do tempo.
- Havéra de ser assim, ruminava a mãe com seus botões, quando um friinho fino trouxe do ontem o perfume doce da avó.
Mas não ficou bem desse modo e jeito. Magnólia, nem passados dez anos, voltou a envelhecer. A pele, de formosa e lisa, engruvinhou-se novamente e a sua mão ficou rugosa e fechada. Os pés pareciam um jenipapo amadurecido e redondo. E o nariz cresceu, provocado pelo renitente perfume que invadia os lugares por onde ela passava. Entontecia com os odores que a rodeavam. A natureza sábia tratou de criar uma defesa, para que o mundo parasse de rodar. Nasceram-lhe pêlos, muitos pêlos, no vão das narinas. Aos dez anos, Magnólia aparentava uma velhinha de 80. A notícia correu o povoado. Desde parteiras, benzedeiras, rezadores, raizeiros, passando pelo prático da farmácia, todos entraram em polvorosa excitação, afundando no medo de que o mal jamais seria debelado. . Pois a filha, não tinha dúvida a mãe, padecia de uma enfermidade , que ela enxergava ser velhice precoce, tal o estado do rosto, da pele do corpo. No fundo, sabia que essa doença era de morte, sem chance de recuperação nenhuma. O relógio do corpo corria ligeiro e se cansaria logo, para o desolamento dos que a amavam.

Teresa Magalhães

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Soca, pilão!


















Não era deslua. O satélite gritava no céu sua claridez. Era brilho e as lesmolisas touvas chamejaram sob as pedras. Luz tanta que machucava os olhos de Dona Branca. Longe, o prateado das águas pincelava a paisagem. Murmurejavam. Além da margem, mais adiante, avançando o pedregoso escarpado, o curral reunia a manada. As vaquinhas transluziam, pontilhando o lusco-fusco com a cor de cal. De repente, um teco-teco, em vôo arriscoso, roncou no céu agreste. Ave de bons augúrios - Seu Amaro. Ele veio resgatar a amada, que fazia farinha aleatória socando o pilão.

Sons alvacentos invadiam Dona Branca. Agitada, estupefazia a farinha, que subia e descia ao baque surdo do tronco tosco mal escavado. Tinha uma ema por lá, comendo cobras, que era o que ela fazia melhor. E tinha também uma capivara sem nome. Na densa mata a bordejar os pastos, jaguatiricas e macacos. Papagaios, periquitos, araras com os bicos altos, recurvados, aquietavam, no pouco-a-pouco.

Os roceiros que semearam a terra teriam o merecido sossego. O feijão borbulhando na panela bafejava o cheirinho gostoso da comida caseira. Crianças no beabá das cartilhas faziam a lição da Dona Rosa, professorinha rural. Letras bambas alcançavam a linha de cima, depois a linha debaixo, no caderno de caligrafia.

Lá fora, Dona Branca. Ainda. Esperava o Seu Amaro e socava a farinha para o tutu. De longe vinha um som de viola, metálico como o sorriso dele. Dedilhavam uma chorosa melodia cabocla. A melancolia do crepúsculo. O som-ímã atraiu os olhos de Branca. Tocou-a, corda estirada em vibrato. Trêmula, recebia Seu Amaro, que pousava devagar.

"Noite, dona Branca. Na lida até essa hora? Querendo, posso socar a mandioca". Era o que ouvia já de longe, mas as maritacas tardias se incumbiam de zelar pelo caos. Ela sentiu um torpor com cheiro de alecrim e gosto de ambrosia. Suspirou.

Amar, Amaro...

A negrura dos olhos dela furou a bruma farinhosa. Alumiados de doçura. Remexeu as cadeiras de aparência mansa. Tempestuosa, no íntimo. Mulher tímida disfarçava, nas roupas discretas, a fome de amar.

Mas Seu Amaro via, via tudo o que estava por vir. Via suas coxas úmidas, via o sangue pulsando forte em suas veias, via o coração desembestado, enquanto imitava o socar do almofariz com o peito arfando. Ele era o agrônomo, vinha sempre perguntar, perguntava e ouvia. Era o homem que escutava dona Branca. E por isso ela tremia como as varas de pescar que ele trazia, nos dias de folga, enquanto acompanhava o deslizar.

No ir-e-vir, vir-e-ir. Tronco, gral, farinha, olhos, quadris, seios arfantes. Seu Amaro foi ficando zonzo, foi-se achegando, todo doçura campestre. Tão perto que podia respirar o hálito febril de Dona Branca. Desmodo. Olhos, quadris, sangue, braços, a brancura dela, seu olhos tão negros....Ele não pôde. Ele pôde. Respirou fundo.

Eram perguntas descabidas para o momento, como andava a calda do agrotóxico? E todos usavam as luvas? E iriam mecanizar a colheita da soja e do milho ou nada disso? Então ela encostou de leve a perna úmida no pilão e depois a outra, sem perder de vista a atenção dele descendo até suas ancas.

Uma lembrança atravessou silenciosa entre os dois. O ex-marido, memória descorada pelos anos, estacou no terreiro antigo, encarando-a. Podia ver sua palidez moribunda, a mortalha branca assombrando-a. Pensou em correr, fugir dali. A memória das crianças pequenas, do companheiro tão bom, na lida com o roçado, sufocou-a. Precisava desviar-se do desejo urgente.

Porém.

Embaraçou-se no faz-que-fazia farinha, esbarrou no pé do agrônomo. Cambaleante. ‘Desculpa o mau jeito, Seu Amaro’.Em meio à singelez tanta pureza, Seu Amaro arresistido arrebatou Dona Branca. A noite ficou pequeninha para tanto amar.

Teresa Magalhães

domingo, 8 de agosto de 2010

Camélia

                                        
Senhoritas de Avignon- Pablo Picasso

Era mais uma corruptela que cidade. Faltosa e chuvarenta. O calor molhado e vermelho encharcava os pés dos passantes e deixava as fisionomias viscosas. O espírito atolado na lama. As casas simples, com janelas de madeira em cores pálidas, sarapintavam o terreno íngreme. Ali não havia organização urbana, as ruelas nasceram sem planejamento. Ora as construções se agrupavam, ora um grande hiato as separava. O lugarejo sobrevivia por uma razão exclusiva: era o ponto derradeiro de uma linha de trem que cortava o Estado. Quem não se aboletasse por aquelas bandas, teria que embarcar na jardineira do Pitelli, compartilhando o veículo com porcos e galinhas. Estrada de terra batida, repleta de buracos, levava os viajantes aos lugares vizinhos. A linha de trem era o divisor de águas entre o que nomeavam moças de família e as meninas de frete. O poder econômico acompanhava a topografia montanhosa. Lugares altos. Mansões. Na cidade baixa, no fim da Rua Nonhô do Livramento, ficava o lupanar. As mulheres-damas se reuniam ali e esperavam por melhores dias. Para a sobrevida, entresonhavam com os encontros, cujo interesse maior eram as escapadelas furtivas dos senhores de dinheiro.
A moradia com uma tímida varanda, pintada de azul celeste, parecia chorar. A tinta escorrida desenhava listas verticais. A dona, Maria dos Prazeres, era uma flor murcha. Encarquilhada. Os cabelos ralos mostravam o couro cabeludo, como se tivessem caído em tufos, vítima de alguma doença terrível. A boca sempre pintada de vermelho-rubro, tombada nas laterais, deixava escorrer a cor dos lábios trincados pelo tempo. Melancólica. Da beleza perdida, sobrou a casa, prêmio recebido de um homem que a amou de verdade. Mas isso fazia muito tempo. Abaixo dela, em idade, e de sua inteira confiança, havia Orinéia. Vista de costas, quando lavava a calçada, era confundida com uma garotinha de cintura fina e quadris apetitosos, porém o rosto tinha sinais capazes de afastar qualquer cristão. O nariz torto, herança de uma antiga surra. Os olhos bugalhudos, como se fosse fossem saltar do rosto, acomodavam-se em duas acentuadas bolsas de gordura e resumiam uma tristeza embaraçosa. A pele seca e amarfanhada. Trabalhadeira, cuidava da limpeza, em troca de teto e comida. Não era mais desejada pelos homens, o que representava um lenitivo: cansou de ser amada sem amor. Excluindo as duas vetustas, a juventude sorria na Morada Azul. A mais nova - Camélia - tinha 12 anos. Linda, linda. Conservava a virgindade à moda de quem guarda um tesouro.
Um dia veio a notícia: Maria dos Prazeres morreu vítima de infarto fulminante. Foi encontrada na cama, com as mãos enroladas em um rosário de pedrinhas verdes. A Morada Azul se inundou de curiosos. Não perdi a oportunidade. Queria ver por dentro como viviam as andorinhas. Não havia os cortinados de veludo vermelho, nem os tapetes fofos, nem as colchas de cetim que eu inventava em minhas fantasias. O ambiente nu em adereços, paredes descascadas, lençóis grosseiros. As mulheres, rostos borrados pelas lágrimas, caricaturavam as máscaras teatrais. Reproduziam o mesmo tipo de maquiagem branca, olhos pintados com lápis preto e batom vermelho. Os vestidos decotados afrontavam a morte. Feitas em série, na indústria do corpo. Menos Camélia. Destacava-se de tudo que eu já tinha visto nos meus parcos 13 anos. Parecia um anjo de olhos negros e cabelos cacheados que ensolaravam o tempo chuvoso. Os seios apontavam tímidos sob o discreto vestido de algodão. Os pés quase nus, sob as duas tirinhas da sandália, mostravam os dedos longos e afilados com um anelzinho de contas brilhantes. Servia café. Minhas mãos tremeram quando peguei a xícara. Elas e todo meu corpo acanhado me denunciaram. Abaixei os olhos para dissimular o rubor de vergonha e encantamento que a beleza da menina provocou em mim. Mergulhei-os na xícara, sem coragem de encará-la. Quando for embora daqui, vou me estapear por ser tão bobo. Mas o que eu pensei ser demérito, foi recompensa para a minha masculinidade. Para a garota, eu também era único. Não tinha o olhar cobiçoso dos homens que lhe causavam repugnância. Escondido em minha timidez, demorei a perceber isso.
A tarde escorreu entre lágrimas. O céu do cemitério encharcou os cabelos tintos das mariposas em delgado vôo vespertino. Baixaram o caixão. Levantou-se a voz grave de um homem, o qual fez um discurso barroco sobre o triunfo da morte. E a jovem Camélia, luzidia e perfumosa, celebrava a vida, como uma nesga de sol desafiando o dia melancólico. A leveza adolescente, deslizando entre as sepulturas, ignorava as idéias mórbidas que faziam eco no íntimo dos mais velhos. Antes de ir embora, aproximou-se de mim e deixou cair um bilhetinho com as letras borradas: - Espero você amanhã às 5 da tarde. Olhei para os lados, para trás, surpreso e ressabiado, antes de pegar o papel. Ela partiu, em tempo de voltar a cabeça. Num gesto lento e muito feminino, capturou-me de vez com um sorriso de cumplicidade. Camélia, a mais pura das mulheres, criada no meio das marafaias, foi meu primeiro amor.


Teresa Magalhães

domingo, 1 de agosto de 2010

Tardança


João e Maria uniram-se na época das águas. O céu transbordava as cisternas. Moldado no campo, ele conheceu as ranhuras da terra, a tardança da sementeira para chegar à colheita. Pulsava em sintonia pausada com o solo. Apaziguada, ela o seguiu. Estaria ao lado do marido, na construção do tempo macio e do amor tramado na sutileza. A casa avarandada ficava na elevação do terreno, à beira do longo rio, que dilatava o olhar. Silencioso, largo, profundo. Frisado à flor da água, rebrilhava ao pôr-do-sol, bordando a paisagem de ouro e calma. Nos primeiros meses, o vento frio penteou as campinas e inventou abraços tépidos. Era a hora aveludada dos sussurros e da lasciva embriaguez. Derramados em lava fluida, fundiam-se.
O relógio correu no urgente galope da felicidade. Voraz e veloz. Maria acolchoava a casa branca com cores quentes, como se pudesse capturar o instante. Serena e musical, alheada dos medos. Mas a verdade se tece no costurar das horas, no sal dividido e mastigado. Antes das mil e uma noites, João foi se esquisitando. A mulher alongava o olhar, a fim de espiar os inalcançáveis olhos. Parecia-lhe que amarelavam e vertiam lágrimas, na hora da refeição noturna. A palavra elíptica. Será melancolia? Na boca, não cabiam mais os beijos. Rasgaram-se os lábios até a altura das orelhas, cristalizando um sorriso sempre escancarado a desentoar com a água escorrida pelo rosto.
Ele saía rebuçado pelo negrume das horas. Voltava quando as sombras cobriam o sol. O quarto, sem João, era um deserto, o escuro silêncio zumbindo nas fendas íntimas. Maria agarrava-se ao travesseiro, buscava as cobertas, no afã de urdir um lenitivo para o abandono. Oscilava entre vertigens. Sem o ruído de passos, sem a quente respiração que ninava seu sono, ancorou-se nos veludos da memória, para sustentar-se. Até que os empregados chegavam. Poderia dormir.
A casa, de interior acortinado, estribava-o nas voltas. A doçura de Maria, maculada pelo desconcerto, resistia. Na concha da pele, amavam-se ainda. Mas a aurora surgia com o repetitivo sobressalto: a ausência do companheiro. A desconfiança roubando-lhe o sossego. Teria ele outra mulher? Atormentada pela dúvida, resolveu segui-lo. Saiu protegida pela escuridão. O seu homem não foi longe, esquivava-se apenas. Escolheu um banco de areia e se deitou, esperando o sol, para jacarezar na quietude imóvel. Solitário. Ela teve a impressão de que ele vestia uma longa cauda. Boca aberta quando o sol ia alto. Nas horas de maior calor, mergulhava nas águas do rio. Permanecia submerso, durante longos períodos de tempo. A mulher freou um grito de aflição. Vai morrer afogado, meu amor! Voltou para casa, taciturna. O segredo era muito denso para suportá-lo. O enigma arrevesado de João teceu seu mutismo. Maria nunca mais cantou nem falou. Os momentos de solidão, passava-os na varanda vigiando os mistérios do rio. Às vezes, vislumbrava um tronco de árvore, inerte, deitado ao longe. Às vezes, ele desaparecia sob a tremura da superfície molhada. De certa feita, viu um enorme réptil, de patas curtas, se movendo, à margem.
O sol escaldante secou a fartura das águas. O rebrilhoso filete de rio feria os olhos do alpendre branco. Ela não podia mais vê-lo, tanta a luz. Amarrada à insólita realidade, esperava. Os braços tombados.
A soma dos meses virou as folhas do calendário. Maria resistiu à longa e erma travessia. Quieta, quieta. Até que, em incerto dia, amanheceu ao lado de um monstruoso crocodilo. Não sentiu medo. Respirou aliviada, não estava mais só. Sabia que, sob o couro brilhante e duro, escondia-se o homem que amava.
Teresa Magalhães