Nenúfares

Nenúfares
Monet

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Tempos pós-modernos

Toulouse  Lautrec


A mesa era no canto. O bar imenso, ainda vazio. Sozinha, Manoela fumava e bebia uma bebida amarga. Olhos pregados no copo. Vez em quando ouvia uma frase solta, que vinha da rua. Um pigarrear. Silêncio de novo. Trazia um livro, que folheava, às vezes, sem nada ler. O pensamento longe colocava um sorriso em sua boca. Se alguém a flagrasse, pensaria está apaixonada. Mas não. A paixão já arrefecera. Virou  refrigério para os dias ásperos.
Ela o viu pela primeira vez em um vernissage. Olhava uma escultura em madeira - uma mulher nua, que em vez de pernas tinha raízes. Atenta, via o trabalho, quando um rapaz se aproximou. Não era feio nem bonito. Ousado. Anhoto e insinuante, tocou os seios da obra de arte. Ela sentiu um tranco como se fosse tangida por aqueles dedos longos. O homem lançou-lhe um olhar atiçador que a fez estremecer e um precoce sorriso de aquiescência uniu os dois. Era ele o artista da exposição cujas obras seguiam um estilo erótico e surrealista. Moreno, longilíneo, longos cabelos arranjados em um rabo de cavalo. As orelhas  à mostra exibiam um brinco de brilhante, quase feminino. Entretanto, a voz grave e os trejeitos másculos desmentiam a feminilidade. Mãos fortes, gestos firmes. Olhar manhoso, fonte de inúmeras sensações que afluíam para ela. Consciente do fascínio que exercia.
 Na primeira noite, sonhou com as mãos dele tocando os seios da escultura. No aguaçal onírico, as mamas frias de madeira eram as dela, ferventes e encrespadas pelo toque imaginário.
- Outra  bebida, senhora? O garçom  arrancou-a do mergulho.
- Sim, outra dose da mesma, por favor.
Teve a impressão de que o garçom percebera seus seios eriçados. Levantou-se, foi ao banheiro se recompor. Apenas na volta, notou que o bar estava cheio. Varreu o longo salão com o olhar. No canto oposto, o inesperado - ele! Foi em sua direção. Cabisbaixo, assustou-se  ao ouvir a voz de Manoela.
- Você por aqui!  Que deliciosa surpresa!
- Oi, Manoela. Como está?
- Bem, muito bem, fingia ela. Pedro, pensava em você. Como vai a vida, tem produzido bastante? Enquanto falava, com um jeitinho brejeiro, ela se lembrava da única noite de amor que tiveram.
- Vou indo. Produção se amiudando. Quer dizer, na verdade, não estou nada bem. Acabo de  pegar o resultado do teste...
- Teste?
- Sim, aquele mais sinistro.
- E então?
Desassossego. O tempo se esgarçando enquanto as paredes a comprimiam. As mãos de Pedro tremeram. Titubeou. Ela precisava saber. Por fim, abriu o envelope e deu o veredictum:
- Positivo. Olha aqui, Manoela, positivo!
O desespero roubou a leveza de seus gestos. As pupilas se dilataram, sentiu as pernas bambas. Taquicardia. Aterrorizada reavaliava a palavra. Quer dizer que positivo é negativo? Negativo é positivo? Jamais pensara na finitude. “Quando a indesejada das gentes chegar.” Lembrou-se do professor de Literatura declamando o poema de Manoel Bandeira. Queria ter a ironia do poeta para dizer à morte: - Alô, iniludível!
- Não acredito! Como?  Tem certeza? Quer dizer que...
- Sim, é melhor procurar um médico.
                
Teresa Magalhães

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Último dos encantos

Escultura de Camille Claudel
O abraço forte, a candura enlouquecida

Vago espaço enfraquecido pelo tempo

Saudade impossível de ser esquecida

Ah! Se eu fosse alado como o amor!



Beijaria teu dorso como o vento

Que sopra a fragrância dos mares,

Bronzearia tua pele

Com o calor do meu corpo,

Diria as palavras repousantes,

Jamais ditas pelos amantes,

Acenderia a vela apagada

E, quase naufragada dos olhos,

Com a réstia pálida que a maré

Quebrante partiu no estrondo de um grito.



Ah! Se eu fosse o marinheiro das bocas abandonadas!

Suavizaria o sono perdido

Apaziguaria os lábios deixando o silêncio

A sede, o desejo, a vontade, a peregrinação

Na brisa dos loucos ardores...

Perfumaria a atração das formas

Com o cheiro das constelações desconhecidas

Faria a vela acesa navegar

Próxima da noite enaltecida

Como se a última luz fosse a nossa.



Ah! Se eu fosse poesia ou poeta!

Recitaria a vertigem de tanto voar

O medo da solidão do deserto

A vaidade de tantos TANTO em tão pouco

Mesmo querendo ocultar tudo

Quando todos os sentimentos esquecerem

O orgulho que o ciúme destrói.



Se eu fosse amor, marinheiro e poesia!

Apagaria todo futuro sem condições

Pelo amor incontável que apenas

Um coração é capaz de suportar

Pelas vezes finitas já amadas

E agora o encanto esculpe

No infinito dos versos a última cruzada

Mas só se eu for marinheiro das bocas abandonadas.

Texto de FLÁVIO HENRIQUE TOSHIRO USHIROBIRA, advogado, mora em Ribeirão Preto,
aluno do curso Ave, Palavra há um ano.

domingo, 17 de outubro de 2010

O olhar

Foto de Adriana Gragnani

Entre o veludo  verde
 e a aspereza cinza,
ela depositou
os olhos de mormaço.
Deixou-os ali,
eternizados em doce melancolia.

Teresa Magalhães


quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Amores Líquidos



O título do livro Amor Líquido, do sociólogo polonês Zigmunt Bauman, é sugestivo e, sobretudo, apropriado para um sentimento que não se submete docilmente a definições.(...)
A noção de liquidez, quando se refere às relações humanas, tem um sentido inverso ao empregado nas relações bancárias, a disponibilidade de recursos financeiros. A liquidez de quem tem uma conta polpuda no banco, acessível a partir de um comando eletrônico é capaz de tornar qualquer desejo uma realidade concreta. É um atributo potencializador. O amor líquido, ao contrário, é a sensação de bolsos vazios.(...)

Esse mundo líquido, em que as relações se estabelecem com extraordinária fluidez, que se movem e escorrem sem muitos obstáculos, marcadas pela ausência de peso, vive em constante e frenético movimento.  A rapidez da troca de informações e as respostas imediatas que esse intercâmbio acarreta nas decisões diárias; qualidades e produtos que ficam obsoletos antes do prazo de vencimento; a incerteza radicalizada em todos os campos da interação humana; a falta de padrões reguladores precisos e duradores; são evidências compartilhadas por todos os que estão neste barco do mundo pós-moderno. Se esse é o pano de fundo do momento, ele vai imprimir sua marca em todos as possibilidades da experiência, inclusive nos relacionamentos amorosos. O sociólogo Zygmunt Bauman mostra como o amor também passa a ser vivenciado de uma maneira mais insegura, com dúvidas acrescidas à já irresistível e temerária atração de se unir ao outro. Nunca houve tanta liberdade na escolha de parceiros, nem tanta variedade de modelos de relacionamentos, e, no entanto, nunca os casais se sentiram tão ansiosos e prontos para rever, ou reverter o rumo da relação.
O apelo por fazer escolhas que possam num espaço muito curto de tempo serem trocadas por outras mais atualizadas e mais promissoras, não apenas orientam as decisões de compra num mercado abundante de produtos novos, mas também parecem comandar o ritmo da busca por parceiros cada vez mais satisfatórios. A ordem do dia nos motiva a entrar em novos relacionamentos sem fechar as portas para outros que possam eventualmente se insinuar com contornos mais atraentes, o que explica o sucesso do que o autor chama de casais semi-separados. Ou então, mais ou menos casados, o que pode ser praticamente a mesma coisa. Não dividir o mesmo espaço, estabelecer os momentos de convívio que preservem a sensação de liberdade, evitar o tédio e os conflitos da vida em comum podem se tornar opções que se configuram como uma saída que promete uma relação com um nível de comprometimento mais fácil de ser rompido. É como procurar um abrigo sem vontade de ocupá-lo por inteiro. A concentração no movimento da busca perde o foco do objeto desejado. Insatisfeitos, mas persistentes, homens e mulheres continuam perseguindo a chance de encontrar a parceria ideal, abrindo novos campos de interação. Daí a popularidade dos pontos de encontros virtuais, muitos são mais visitados que os bares para solteiros, locais físicos e concretos, onde o tête à tête, o olho no olho é o início de um possível encontro. Crescem as redes de interatividade mundiais onde a intimidade pode sempre escapar do risco de um comprometimento, porque nada impede o desligar-se. Para desconectar-se basta pressionar uma tecla; sem constrangimentos, sem lamúrias, e sem prejuízos. Num mundo instantâneo, é preciso estar sempre pronto para outra. Não há tempo para o adiamento, para postergar a satisfação do desejo, nem para o seu amadurecimento.É preciso se ligar, mas é imprescindível cortar a dependência, deve-se amar, porém sem muitas expectativas, pois elas podem rapidamente transformar um bom namoro num sufoco, numa prisão. Um relacionamento intenso pode deixar a vida um inferno, contudo, nunca houve tanta procura em relacionar-se. (...) Bauman vê homens e mulheres presos numa trincheira sem saber como sair dela, e, o que é ainda mais dramático, sem reconhecer com clareza se querem sair ou permanecer nela. Por isso movimentam-se em várias direções, entram e saem de casos amorosos com a esperança mantida às custas de um esforço considerável, tentando acreditar que o próximo passo será o melhor. A conclusão não pode ser outra: “a solidão por trás da porta fechada de um quarto com um telefone celular à mão pode parecer uma condição menos arriscada e mais segura do que compartilhar um terreno doméstico comum”.
Fonte:  Jornal Gazeta Mercantil

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

A toalha de Dona Zilá

                                                    Foto  de Adriana Gragnani

 A esperança de Dona Zilá
 balançava ao vento,
 Bandeira de margaridas,
 hasteada no varal muito alto,
 prenunciava  a noite regada a vinho e olhares febris...
Teresa Magalhães

                                   *  *   *

...e no silêncio do lusco-fusco,
ela despia uma margarida,
pétala por pétala,
lentamente num bemmequer,
mal-me-quer, bemmequer, mal-me-quer,
bem..

 Salviano Santos

                              * * *

                           

      - Dona Zilá, olhe quem está em seu jardim!
       É o senhor das flores
Ele entrega rosas para quem lhe sorri.

- Que  belo sorriso, Dona Zilá
Receba este ramalhete.
Ande, deixe de dengo, venha cá!

- Sou homem de bem, Dona,
Ando  entre os quintais,
Faço agrados a quem me apraz

A mulher, grávida de esperança, colheu seu presente.
Tardes voaram e noites se arrastaram,
uma a uma.
Dona Zilá continuou a esperar.

Nícolas


O camafeu

Há dias estava obcecada por um camafeu que havia desaparecido. Era uma relíquia de família, tão antiga quanto seus ancestrais. Com quem estaria a peça delicada que virou ideia-fixa? Recordava cada minúcia da joia. Esculpida em ágata, uma figura delicada de mulher em alto relevo brilhava sobre estrutura oval, com as bordas rendadas em ouro.
Morreu a vizinha, velha amiga da família. Ela não gostava de chegar perto de caixões, mas resolveu prestar sua homenagem, com os olhos quase fechados. Ao se defrontar com a morta...Mas que quartzo! No pescoço desbotado de Dona Constância, faiscou o camafeu que a atormentava. Aproximou-se, a contragosto, para lhe beijar a testa e surrupiou a joia da falecida. Nunca teve coragem de usá-la, embora fosse sua por direito. Parecia-lhe que cheirava à morte. Ficou para sempre escondida no fundo falso na gaveta.

Teresa Magalhães