Nenúfares

Nenúfares
Monet

domingo, 3 de julho de 2011

Entre começos e fins

Mas talvez o fim de um amor
seja um fenômeno tão misterioso quanto o apaixonamento. Talvez existam duas
mágicas opostas, igualmente incontroláveis, uma que faz e outra que desfaz.
Contardo Calligaris



 
Ficar sozinha não era mais uma exceção.
Gostava do silêncio, da casa organizada e limpa. O mundo inerte, sem o alvoroço da juventude. Solidão tem muito de liberdade, mas também de aprisionamento, pensou. Sentia-se flagelada pelos desejos. Havia tantos quereres! Poderia escolher qualquer um deles, para realizar. Mas perdia-se. O que era mesmo que ia fazer agora? Voltou ao Retrato de Dorian Gray, que terminava de reler.  O ex tinha lido o mesmo exemplar. Maria folheou novamente o livro, para memorizar as frases sublinhadas por ele, com caneta de ponta grossa e as devidas anotações críticas, ao lado.  Era uma forma transversa de infiltrar-se em sua natureza misteriosa... Ela intuía algumas coisas dele, baseada em seus hábitos, mas sua penetração não atravessava a epiderme da alma. Homem de natureza impenetrável. Abriu o livro
numa página qualquer: "A única maneira de libertar-se de uma tentação é entregar-se a ela. Resista, e sua alma adoecerá de desejo das coisas que ela a si mesma se proibiu, com o desejo daquilo que suas leis monstruosas tornaram monstruoso e ilícito." Por um instante, o pensamento ficou vazio.
Concentrou-se na frase: ... "A única maneira de libertar-se de uma tentação é entregar-se a ela."  Foi o que ele fez.. Rendeu-se sem rédeas ao braseiro impetuoso que era o  entre-coxas da outra.  A mais branca de todas. A menos bonita. Porém, a mais doida.
Teresa Magalhães

 

terça-feira, 7 de junho de 2011

A crise da multitarefa


O Outono da Multitarefa

A Neurociência confirma o que todos suspeitamos: a multitarefa está nos deixando mais lentos e  loucos. A odisseia de um homem por meio do
pesadelo da conectividade infinita.

Por WALTER KIRN


A Recessão do Déficit de Atenção.


Todos nos lembramos das promessas. Dos slogans. Falavam de liberdade, liberação. Supostamente, estávamos de algemas e queríamos tirá-las. A chave que chacoalhava na nossa frente era um microchip.

"Aonde você quer ir hoje?"-perguntava a Microsoft numa campanha publicitária em meados dos anos 1990. A sugestão é de que haveria infindáveis destinos - alguns geográficos, alguns sociais, outros intelectuais - que poderiam ser alcançados em milissegundos ao se utilizar o aparelho certo com o software apropriado. Era também insinuado que onde você ia era totalmente por sua conta, não da sua esposa, do seu chefe, dos seus filhos ou do seu governo. Autonomia através da Automação.

Esta foi a falácia embrionária que se tornou no monstro da multitarefa.

Liberdade humana, como classicamente definida (pensar e agir e escolher com mínima interferência de poderesexteriores), não é um produto que marcas como Microsoft poderiam oferecer, mas eles a relançaram como algo que poderiam prover. Um produto para o qual poderiam aumentar a demanda através do refinamento de suas características, aumentando sua velocidade, reestilizando sua aparência e conectando-o com todos os outros produtos que também prometiam liberdade, mas a trocaram por três substitutos inferiores que poderiam promover em seu nome: Eficiência, conveniência e mobilidade.

Para provar que esse cacho de virtudes menores não se somam à felicidade mas são, ao invés, a fórmula para um período de frenesi crescente culminando num lapso de fadiga, considere que "Aonde você quer ir hoje?" era na verdade uma sugestão manipuladora, não uma questão aberta. "Vá a algum lugar agora", era a recomendação veemente, e então vá a algum lugar amanhã, mas sempre vá, vá, vá - e com nossa ajuda. Mas algum rebelde respondeu "Lugar nenhum. Estou bem aqui"? Alguém corajosamente questionou "O que te importa?" Alguém teve bravura suficiente para dizer: "Francamente, quero voltar para a
cama"!

Talvez alguns de nós. Não o suficiente. Todo mundo estava indo a algum lugar, pelo que parecia, e ou começávamos a ir também - especialmente para aqueles lugares que não eram lugares (outra palavra que eles redefiniram) mas eram apenas figuras ou documentos ou vídeos ou caixinhas na tela onde estranhos conversavam digitando - ou então não estaríamos em lugar nenhum (um local que já foi conhecido como "aqui") e não fazendo nada (atividade anteriormente conhecida como "vivendo"). Que desperdício seria. Que desperdício da nossa nova liberdade.

Nossa liberdade de ficar ocupado todas as horas, na tarefa - e então nas muitas tarefas e finalmente na multitarefa - de tentar ser livre.

                           * * *

Enquanto o presidente falava no telefone (Srta. Lewinsky supunha que o interlocutor era um Membro do Congresso ou um Senador), ela realizava sexo oral nele.

- The Starr Report, 1998

Não funciona, nem nunca funcionou, e, apesar de ainda fazermos força para que funcione e intrigados em por que ainda não paramos, o que nos faz pensar que podemos continuar para sempre, a parada ou desacelerada está vindo de qualquer modo e, quando chegar, ficaremos estarrecidos por um momento e então reconheceremos que, bem dentro de nós mesmos (um lugar que quase esquecemos que existia), sempre soubemos que não poderia funcionar.

Os cientistas também sabem disso e eles pensam que sabem o porquê. Através de diversos experimentos, muitos usando ressonância magnética funcional para medir a atividade cerebral, eles arrancaram a máscara da multitarefa e revelaram sua verdadeira face, pálida, vazia e sem graça.

A multitarefa desorganiza o cérebro de diversas maneiras. No nível mais básico, o balanço mental que ela requer - a mudança constante de eixo - energiza regiões do cérebro especializadas no processamento visual e coordenação física e simultaneamente aparenta diminuir algumas das áreas superiores, relacionadas ao aprendizado e memória. Nos concentramos no ato da concentração à custa do que quer que seja que deveríamos estar nos concentrando.

O que isso significa na prática? Considere um experimento recente feito pela UCLA [Universidade da Califórnia, Los Angeles], em que pesquisadores pediram a um grupo de vinte e poucas pessoas para pôr em ordem cartões indexados em duas tentativas, uma vez em silêncio e outra enquanto simultaneamente ouvindo uma sequência de sons aleatoriamente apresentados. Os cérebros dos sujeitos lidaram com a tarefa adicional alternando a responsabilidade do hipocampo - que retém e invoca informações - para o striatum, que cuida de atividades rotineiras, repetitivas. Graças a essa mudança, os sujeitos conseguiram organizar os cartões tão bem quanto com a distração musical - mas tiveram muito mais dificuldade em lembrar o que, exatamente, que estavam pondo em ordem, após o experimento.
Ainda pior, alguns estudos acham que a multitarefa aumenta o nível de hormônios relacionados ao estresse, como cortisol e adrenalina, e desgastam nosso sistema através de uma fricção bioquímica, envelhecendo-nos prematuramente. A curto prazo, a confusão, fadiga e caos apenas bloqueiam nossa habilidade de foco e análise, mas a longo prazo, talvez causem sua atrofia.

A nova geração, presumivelmente, é a que sofre o maior golpe. Eles que estão na vanguarda da revolução da multitarefa, mandando mensagens enquanto baixam música em seus iPods e atualizam seu status do Facebook e fazem a lição de casa enquanto assistem a um episódio de The Hills na TV cintilante. (Um estudo recente da Kaiser Family Foundation mostra que 53 por cento dos estudantes do sétimo ano ao terceiro colegial dizem consumir algum outro tipo de mídia enquanto assistem TV; 58 por cento fazem multitarefas enquanto leem; 62 por cento enquanto usam o computador; e 63 por cento enquanto ouvem música. "Fico entendiado se não está acontecendo tudo ao mesmo tempo", diz um jovem de 17 anos citado no estudo). São deles os cérebros que, ainda imaturos, estão sendo moldados para processar informação ao invés de entendê-la ou sequer lembrar-se dela. (...)

Tradução de Lucas Magalhães Araújo

quinta-feira, 3 de março de 2011

Soroca

Manelão chegou à socapa, vestido de aumentativo. Espectador arguto, guardava frases humorizadas para distribuir às moças que porventura o abordassem. Precocemente viúvo. Por isso, antes das falas, antes de tudo, tinha uma determinação: criar as duas filhas, resguardando-se de envolvimentos amorosos. Teodora mesclava amor e verbo em seu nome: teadorar, teodorar.  Bandeira arvorada ao vento. Não resistiu ao jeitão crítico e vistoso de Manelão e abriu um sorriso decotado. Manelão sentiu uma fisgada na memória adormecida: a morte escorrendo entre os dentes da engrenagem. Recolheu o desejo e partiu.

Teresa Magalhães

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Despedidas virtuais


Você já terminou um relacionamento pela internet ou por uma mensagem de celular?

contardo calligaris


NO SÁBADO passado, no Museu da Imagem e do Som de São Paulo, Xico Sá, Bebel Bertuccelli e eu comentamos os resultados de uma pesquisa, realizada pela Nokia, sobre a relação dos brasileiros com as ferramentas sociais da era digital.
Uma das perguntas da pesquisa dizia: "Você já terminou ou já terminaram um relacionamento com você via internet ou por mensagem de celular?".
Responderam positivamente 15% dos entrevistados. Já antes do debate, essa história de namoros terminados com uma mensagem virtual fez que eu fosse repetidamente consultado: o que achava desse horror tecnológico, hein?
Pois é, tendo a considerar esse tipo de despedida virtual com uma certa simpatia.
1) Em geral, aceitamos que, para muitos homens e mulheres, seja mais fácil encontrar alguém no mundo virtual do que no mundo real. Entendemos, por exemplo, que, na hora de seduzir, os tímidos, retraídos, acanhados ou inibidos soltem mais facilmente os dedos no teclado do que a palavra num encontro cara a cara.
Nota: seria injusto contrapor os que preferem o virtual aos que preferem o real como se os primeiros fossem mentirosos e, os segundos, honestos e sinceros. Virtual ou real, o encontro inicial é quase sempre um jogo em que se trata de convencer o outro de que somos alguma coisa que nem nós acreditamos ser. Quem prefere teclar talvez se esconda graças à distância, mas quem prefere falar ao vivo não abre sua alma: apenas desprende a lábia.
2) Se aceitamos que o virtual facilite a abordagem e as primeiras trocas, por que não deixaríamos que o virtual facilite também as despedidas? De fato, o virtual permite que os tímidos, os retraídos etc. declarem sua vontade de se separar, e isso sem medo de encarar torneios verbais que eles perderiam e que produziriam tentativas culpadas, penosas e infinitas de "reatar mais uma vez".
3) No começo de uma relação amorosa, o virtual talvez sirva para mentir melhor; no fim de um amor, ele pode ajudar a dizer a verdade, ou seja, a reconhecer, enfim, que uma relação está continuando apenas como mentira compartilhada.
4) Em média, a dificuldade em "encontrar alguém" não é maior do que a dificuldade em se separar quando uma relação não vale mais a pena.
5) Os tempos de solidão, durante a procura frustrada de um parceiro ou de uma parceira, são tão longos quanto os tempos de solidão de parceiros que vivem sem paixão, sem amizade e, às vezes, no rancor.
6) A insatisfação de quem procura um amor é esperançosa, enquanto a vida dos que não conseguem se separar é resignada.
7) Um SMS ou um e-mail de despedida podem surpreender quem os recebe, mas só como a revelação de algo que ele já sabia e, por alguma covardia, não confessava nem a si mesmo: ninguém termina virtualmente um amor que não esteja realmente morto.
8) Às vezes, sobretudo (mas não só) nas mulheres, a reação de quem recebe a mensagem de despedida é um pensamento delirante: o outro se separa de mim por SMS porque, se aparecesse na minha frente, ele teria que se render ao amor que ele ainda sente por mim (ele não sabe, mas eu sei que ele sente). Nesse caso, salve-se quem puder.
9) Toda separação é, no mínimo, a perda de um patrimônio comum de experiências e memórias. A dor dessa perda é frequentemente projetada no outro: digo que não posso ou não ouso me separar por e-mail ou SMS porque não quero machucar o outro, enquanto, de fato, é minha dor que quero evitar -com isso, eternizo o declínio da relação e o sofrimento do casal.
10) A convivência numa relação morta é um limbo confortável: para ambos, uma espécie de trégua do desejo. A separação apavora com a perspectiva de voltar a desejar. Antes de mandar um fatídico SMS, alguém hesita: "Vai ser difícil voltar à ativa com a minha idade" -e vai ser mesmo. Ou, então, pergunta: "E se eu ficar sozinho?"; resposta: "Mas você já está sozinho, há tempos".
Moral da história. É bom tentar tudo o que der para que uma relação vingue. Quando ela não vinga (mais), é bom ousar se separar. E deveríamos agradecer os parceiros que nos mandam um SMS lacônico e brutal, "Valeu, beijão e sorte". Pois, desprendendo-se, eles nos libertam e encurtam um processo no qual poderíamos perder anos da vida.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Casa torta

Foto de Adriana Gragnani
As veias de cimento não sangram mais
Nem  os ruídos dos bodoques salpicam os olhos da casa.
 Rasgões nos vidros cegos castigam a retina

Mas

Na parede exausta, a vida vigia.

Teresa Magalhães

domingo, 28 de novembro de 2010

Querências


Luzídio. Assim se chamava o moço, nascido e criado no sertão mineiro, à beira do Rio São Francisco. Nunca desarredou-se dali. Era 1940, época de permanecer entre aindas e crendinices.  Vivia de lapidar a cinzel na pedra sabão - artista nato. Desconhecia as letras, porém sabia ler a maciez dos corpos cravados nas rochas. Luzente no sorriso branco, na pele lisa e jovem. Quieto, generoso com os miseráveis. A sua oficina ficava ao pé de uma encosta, lugar de difícil acesso. Para se chegar ali só a cavalo ou a pé. Mesmo assim, raramente passava um dia sem que houvesse visitas ilustres.  Dos pobres, cobrava não.
- Seo Luzídio, quero encomendar uma santa do tamanho de gente graúda, lustrosa, pra cumprir promessa à Senhora de Todas as Graças, só que não tenho dinheiro não sinhô.
-Se apêie, Belermino,  se é por milagre, custa nada não.
 Um palrear aqui , outro acolá ou longos minutos de demoras. Por fim, as horas tombavam na tarde mineira. Depois do trabalho, tinha uma única destinação: levar uma rubra flor para Emiliana, a bem-amada. Era uma Dahlia coccínea, cultivada em estufa, rara na região. O dia era rodeamento do tempo, para estar perto-dela, no valioso fugidio de um minuto. Ia ávido. Depositava a rosa na janela e partia para casa. Costumaz, contumaz. Tão costumeiro hábito que recebeu o epíteto: ‘o moço da dália’.
A jovem preparava gracioso enxoval, costurado por dona Almerinda, portuguesa de mãos lindas, conhecedora de muitos feitiços. Luzídio e Emiliana estavam de casamento tremarcado. Iam viver numa casinha talhada na pedra, feita por ele. Mimo de artesão. A vida, um-só-aguardamento. Do nascedouro até então, morava com o pai e a mãe, já velhinhos, e o irmão – Ostrócio – que era aluado e sabia encantar os lambaris do riacho. Vieram ao mundo muito próximos um do outro, diferença de 11 meses. Desde a meninice, Ostrócio era misterioso, tinha olheiras arroxeadas que lhe davam feição de velhinho. A pele muito branca mostrava o mapeamento das veias azuis. O coração batia tão forte que a circunvizinhança escutava o tum-tum. Fugia ao convívio comum, sabia acalmar as crianças que tinham que ser chupadas por sanguessugas, prática antiga de abaixar a febre terçã.
Luzídio via as estranhezas por dentro. Desimportava. Quando eram crianças, o pai ficou desempregado. Vivia acabrunhado e resmungante. Para ver o sorriso nos olhos dele, o milagreiro enchia a despensa do casebre com deliciosas iguarias. Bastava apertar bem o pensamento focalizado no desejo, ele se realizava. O artista sabia que o irmão não era deste mundo, respeitava suas esquisitices. Também era silencioso e sua excentricidade preocupava a mãe. Desde a pequeninice, vivia enfiando as mãos na terra, caveava, revolvia-a, separava os seixos com cuidado, amassava-a como se fosse fazer pão. Depois de obter uma consistência pastosa, modelava coisas nunca vistas neste planeta.  O que fiz, meu Deus, pra ter duas crianças tão estranhas, redizia a mãe.
Cresceram assim, de insólito modo.
A uma semana do casório, Luzídio, na sofreguidão de levar a Dália para a noiva, atravessou o rio para recortar caminho, molhando-se inteiro. A água estava enfeitiçada. Como em um ritual religioso, passou na casa da noiva, que esperava ansiosa por ele e a dália. Ao ouvir passos, ela correu à janela. Nem deu tempo de tirar o vestido de noiva que experimentava. Hoje quero falar com ele, antes que se vá. Tinham os olhos úmidos, os dois, brilhantes como o nome dele. Lanterna que Deus acende dentro dos amantes.
-Emiliana, minha flô.
- Luzídio, luz da minha vida.
Ele se assombrou quando botou tento na belezura da moça. A tarde se vestiu de noite ao notar que ela trajava o vestido branco. Ó, vale dos azares!
- Emiliana...
- O quê, o quê? Ela ainda sorria.
- Não podia vê vossa mercê com a vestimenta do grande dia.
O sorriso dela fugiu como a presa correndo do predador. Tenha medo não, nada vai nos separar, fingia confiança. A voz eivada de tremura. Vá, vá antes que anoiteça, a chuva se esconde atrás da primeira montanha. Ficarei contando os segundos para vê ocê de novo.
Ele partiu. Chegou a casa pálido, os olhos baços. Ostrócio anteviu a estranhez. Queria despersuadir-se do fatalismo, mas agosto é mês de desgosto, e estavam na metade de um. Sobretudo, acordara com o canal premonitório afiado. Mau agouro. Naquela noite, Emiliana teve sonhos ruins. Reviravoltava-se entre o lençol e o escuro. Nébulas e trevas. O amanhecer pariu um dia chuvoso. Chorante. Malvadez do destino?As linhas tortas na escritura borrada. É, é. Uma febre ruim pegou Luzídio de jeito. Sangrava pelos poros e, em poucas horas, perdera a consciência. Foi correria, benzeção, choradeira. Inconformismo. Pedro e Tião da  Tonha saíram cedo para trazer o doutor. O Ford 29 encalhou.
Não era pra ser.
Ostrócio, que veio a Terra milagrar, nada pôde fazer. Dona Almerinda tentou todas as razões e emoções para justificar a dessabença das feitiçarias que apregoava. Luzídio, exangue, foi levado pelos anjos e arcanjos. Leve como devem ser os artistas. A tarde caía, sol e chuva renitente. Emiliana, viúva sem-véu. Tanto chorou, que o rio transbordou. Contam os vizinhos que ela nunca se casou e que, toda tarde, à mesma hora da visita diária, há uma dália afogueada em sua janela.
                                                                     
              Teresa Magalhães

                      

    



terça-feira, 9 de novembro de 2010

O pulo do gato

Capturado e captura. O gato, o rato, o pássaro.- Mas onde o rato?- Na pulsação inconsciente da ratoeira que espreita. Ela tem olhos verdes e azedos que brilham no cinza-escuro metálico. Espiona o rato ausente, que fareja o olho, que tem medo do gato. É de metal o bico do pássaro.As asas de plástico ritmosas sustentam o vôo. A vida em suspense. São leves demais para a pesada tarefa de carregar seu corpo de ferro. É feito de carne e pêlo e fome o larápio. Prepara o pulo. O gato.

Teresa Magalhães