Nenúfares

Nenúfares
Monet

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Do fio ao frio


Que fio é esse que nos enrosca e amarra,
Ora é alinhavo frouxo, ora um nó górdio?
Estica, estica tanto que, corda tesa, treme com medo de se romper.
Às vezes, rompe em prantos em gritos de raiva.
Outras, é berço e calmaria.
Fio que enlaça e vira ninho, âncora,
Corrente de metal precioso, capturado na bateia humana,
Linha eletrizada percorrendo neurônios e sonhos.

Teresa Magalhães

O simples-complicado

Os quadrinhos são menos simples do que aparentam. A sua prática se fundamenta na narratividade. Eles contam histórias, por meio de imagens, apresentadas em uma descontinuidade gráfica: a cercadura que separa um plano do outro. Os textos verbais, veiculados pelos balões linguísticos, e as onomatopeias complementam essa forma de expressão artística. . Observe a tirinha da
Mafalda, a menina atrevida, inteligente,  criada em 1963 pelo argentino Joaquin Salvador Lavado, o Quino.

 A protagonista e Susanita têm características bem distintas. A primeira é crítica e questionadora enquanto a outra é uma menina desinformada e tola. Para compreender a sutileza da historinha é preciso conhecer as funções sintáticas. No primeiro quadrinho, Susanita usa o verbo amassar- transitivo direto- sem o complemento adequado: Minha mãe amassa. Mafalda a questiona como uma garota que é: de seis ou sete anos, mas com uma visão aguda do mundo: - ‘ Amassa e só’?
A partir daí, Quino vai brincar com a sonoridade das palavras, usando as figuras de linguagem chamadas aliteração e assonância. Quer dizer, há redundância das consoantes /m / e /s / o que caracteriza a aliteração e da vogal /a/, a assonância. Veja:’ A massa se amassa na mesa.’ Ou: ‘ A massa é sã’.Ainda usa o recurso do anagrama, isto é, a palavra amassa contém os mesmos fonemas presentes nos vocábulos massa e .
No quadrinho 4, para finalizar, a protagonista diz: O bom de ir à escola, é que a gente pode ter conversas literárias. Tal enunciado mostra a ironia da menina, como também o conhecimento dos recursos literários usados no contexto.

Teresa Magalhães

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Iniciação


O primeiro verso trêmulo
tem pernas bambas.
Avança, recua acanhado
Gira entre afamadas frases.
Rodopia no claro-escuro gesto
Vacilante.

E pulsa nos intervalos,
Busca sinonímias, antonímias.
Rimas, romãs e sinas.
Desnuda sentidos,
Reveste verbos antigos.

O primeiro verso tremula
Bandeira branca em busca de brisa.
No mar de palavras
Vai sem leme, vela desnuda..
Primitiva essência, ondulando aos ventos.

Teresa Magalhães

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Que seja feliz!


A notícia de sua partida rangeu como a roda magra de um carro de bois. Rompeu o lacre denso de primitivas memórias. Mutatis mutandis. Mudar o que precisa ser mudado. O arrastar de móveis no pasto interior. Relva molhada que suga o pé das cadeiras pesadas, engole a quina dos quadros multicores, ensopa cortinas. Uma enfezada interrogação cresceu onde antesmente havia perfumes. Quem era esse homem?- interrogava-me no desassossego. Um ferrugento menino desinquieto por ser feliz? Sorri. É certa sua alma generosa. Vai recolher o passado, experimentar a iguaria do ‘ pão de fome guardado na algibeira’. Vai pisar as maduras calçadas onde brincou na infância. Minha inquietação se dissipou e desejei – verazmente- que fosse feliz.


 Teresa Magalhães

domingo, 20 de junho de 2010

Vertigem

A promessa de amor
 carrega em seu ventre
o corpo vestido de arrepios.
Caverna de lumes,
Estalactites , estalagmites.
Salão subterrâneo da pele.
A pausa do tempo.

 Suspensos em loucos lençóis,
Os amantes soletram a inquieta lascívia.
Salivas entrelaçadas
banham os porões do devir.

                                                                                       O beijo prometido
                                                                                        é vertigem
                                                                                        Amor dissolvido
                                                                                     nas entranhas do outro

                                                                                         Teresa Magalhães

sábado, 19 de junho de 2010

E agora, José?

Há versos célebres que se transmitem através das idades do homem, como roteiros, bandeiras, cartas de marear, sinais de trânsito, bússolas – ou segredos. Este, que veio ao mundo muito depois de mim, pelas mãos de Carlos Drumonnd de Andrade, acompanha-me desde que nasci, por um desses misteriosos acasos que fazem do que viveu já, do que vive e do que ainda não vive, um mesmo nó apertado e vertiginoso do tempo sem medida. Considero privilégio meu dispor deste verso, porque me chamo José e muitas vezes na vida me tenho interrogado: “E agora José?” Foram aquelas horas em que o mundo escureceu, em que o desânimo se fez muralha, fosso de víboras, em que as mãos ficaram vazias e atônitas. “E agora José?” Grande, porém, é o poder da poesia para que aconteça, como juro que acontece, que esta pergunta simples aja como um tónico, um golpe de espora, e não seja, como poderia ser, tentação, o começo de interminável ladainha que é piedade por nós próprios.
Em todo caso, há situações de tal modo absurdas (ou que pareceriam vinte e quatro horas antes), que não se pode censurar a ninguém um instante de desconforto total, um segundo em que tudo dentro de nós pede socorro, ainda que saibamos que logo a seguir a mola pisada, violentada, se vai distender vibrante e verticalmente afirmar. Nesse momento veloz tocara-se o fundo do poço.
Mas outros Josés andam pelo mundo, não o esqueçamos nunca. A eles também sucedem casos, desencontros, acidentes, agressões, de que saem às vezes vencedores, às vezes vencidos. Alguns não têm nada nem ninguém a seu favor, e esses são, afinal, os que tornam insignificantes e fúteis as nossas penas. A esses, que chegaram ao limite das forças, acuados a um canto pela matilha, sem coragem para o último ainda que mortal arranco, é que a pergunta de Carlos Drumonnd de Andrade deve ser feita, como um derradeiro apelo ao orgulho de ser homem. “E agora José?”
Precisamente um desses casos me mostra que já falei demasiado de mim. Um outro José está diante da mesa onde escrevo. Não tem rosto, é um vulto apenas, uma superfície que trem como uma dor contínua. Sei que se chama José Junior, mas mais riquezas de apelido e genealogias, e vive em São Jorge da Beira. È novo, embriaga-se, e tratam-no como se fosse uma espécie de bobo. Divertem-se à sua custa alguns adultos, e as crianças fazem-lhe assuadas, talvez o apedrejem de longe. E se isto não fizeram, empurraram-no com aquela súbita crueldade das crianças, ao mesmo tempo feroz e cobarde, e o José Junior, perdido de bêbado, caiu e partiu uma perna, ou talvez não, e foi para o hospital. Mísero corpo, alma pobre, orgulho ausente - “E agora José?”
Afasto para o lado meus próprios pesares e raivas diante deste quadro desolado de uma degradação, do gozo infinito que é para os homens esmagarem outros homens, afogá-los deliberadamente, aviltá-los,fazer deles objecto de troça, de irrisão, de chacota-matando sem matar,sob a asa da lei ou perante sua indiferença.Tudo isto porque o pobre José Júnior é um José Júnior pobre.Tivesse ele bens avultados na terra ,conta forte no banco, automóvel a porta-e todos os vícios lhe seriam perdoados.Mas assim, pobre, fraco e bêbedo, que grande fortuna para São Jorge da Beira.Nem todas as terras de Portugal se podem gabar de dispor de um alvo humano para darem livre expansão a ferocidades ocultas.
Escrevo estas palavras a muitos quilômetros de distância, não sei quem é José Júnior, e teria dificuldade em encontrar no mapa São Jorge da Beira.Mas estes nomes apenas designam casos particulares de um fenômeno geral:o desprezo pelo próximo, quando não o ódio, tão constantes ali como aqui mesmo, em toda parte, uma espécie de loucura epidêmica que prefere as vítimas fáceis.Escrevo estas palavras num fim de tarde cor de madrugada com espumas no céu, tendo diante dos olhos uma nesga do Tejo, onde há barcos vagarosos que vão de margem a margem levando pessoas e recados.E tudo isto parece pacífico e harmonioso como os dois pombos que pousam na varanda e sussurram confidencialmente.Ah, esta vida preciosa que vai fugindo,tarde mansa que não será igual amanhã, que não serás, sobretudo o que agora és.
Entretanto,José Júnior está no hospital, ou saiu já e arrasta a perna coxa pelas ruas frias de São Jorge da Beira.Há uma taberna, o vinho ardente e exterminador, o esquecimento de tudo no fundo da garrafa,como um diamante, a embriaguez vitoriosa enquanto dura.A vida vai voltar ao princípio.Será possível que a vida volte ao princípio?Será possível que os homens matem José Júnior?Será possível?

Cheguei ao fim da crônica, fiz o meu dever.” E agora, José?”

Saramago, José. A bagagem do viajante- crônicas

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Fuja do ' a nível de'
















A locução a nível de, modismo desnecessário e condenável, tornou-se uma das mais terríveis muletas lingüísticas da atualidade, em substituição a praticamente tudo que se queira. Veja alguns casos em que a locução aparece e como evitá-la: Decisão "a nível" de diretoria (decisão de diretoria). / Decisão "a nível" de governo (decisão governamental). / Reunião "a nível" internacional (reunião internacional). / O clube está fazendo contratações "a nível de" futuro (contratações para o futuro). / A proposta pelo jogador será "a nível de" (em torno de) 5 a 6 milhões de dólares. / Pude avaliar o técnico "a nível de" (como) uma pessoa pública. / Ela, "a nível da" (em relação à) eleição, só pretende votar bem. / "A nível de" (como) jornalista, prefere assuntos mais leves. 2 - Em determinados casos podem ser usadas as locuções no plano (de) e em termos de. Ou, em última instância, no nível de e em nível de (uma vez que nível rejeita o a sozinho): Os candidatos teriam hoje, "a nível" nacional (no plano nacional, em termos nacionais), 24% das intenções de voto. / O grupo elevou a entidade "a nível" primeiro-mundista (ao nível primeiro-mundista). 3 - Existe ainda ao nível de, mas apenas com o significado de à mesma altura: ao nível do mar.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

“O moral do time está elevado”

O prezado leitor certamente sabe que, quando se fala do gênero das palavras, fala-se de masculino e feminino. E sabe também que, em alguns casos, a questão é delicada. Um desses casos é o da palavra “moral”, cujo gênero depende do sentido. Outra da turma é “grama”: quando nome de vegetal, é feminina (“O frio queimou a grama do jardim”); quando unidade de massa, é masculina (“O grama do ouro custa...”).
Muitas dessas duplas são bem conhecidas e usadas regularmente, o que dispensa explicações: “o/a estepe”, “o/a coral”, “o/a capital”, “o/a cabeça”, “o/a rádio” etc. Mas há casos em que pelo menos uma das palavras que formam o par é de uso mais raro: “o lente” (que pode ser “aquele que lê” ou “professor de certa graduação”) e “a lente” (que, além de feminino de “o lente”, é instrumento óptico utilizado em óculos, câmeras, microscópios etc.); “o baliza” (“soldado que indica os movimentos que a tropa deve realizar”) e “a baliza” (“qualquer objeto que assinale um limite”).
O caso de “moral” é interessante. Seus dois sentidos básicos (“código de princípios”, “honestidade” e “ânimo”, “estado de espírito”) são bem conhecidos, mas, no uso comum, o gênero sofre alguma oscilação. Com o sentido de “código de princípios”, não há dúvida: a palavra é feminina (“Sua atitude fere a moral vigente”). No caso de “estado de espírito”, “ânimo”, no entanto, o uso cotidiano aponta para o feminino (“As vitórias levantaram a moral do time”; “Os jogadores estão com a moral elevada”), o que não confirma o que se lê nas gramáticas e nos dicionários, que registram o que se encontra na variedade culta da língua, isto é, dão o termo como masculino (“As endomorfinas podem contribuir para elevar o moral do paciente”; “O vestido atua imperiosamente sobre o moral do indivíduo” _o primeiro exemplo é do “Houaiss”; o segundo é de Camilo Castelo Branco, citado pelo professor D. P. Cegalla).
Convém não esquecer que “moral” também pode funcionar como adjetivo, caso em que é uniforme, ou seja, tem forma única para masculino e feminino: “Isso é uma questão moral”; “Isso é um problema moral”.
Quando procurar “moral” num dicionário, é bom tomar cuidado. Se o primeiro sentido registrado é o do adjetivo, surgirá a indicação “2g.” (dois gêneros). Mas cuidado: isso vale para o adjetivo, que, como já vimos, é uniforme. Quando se dão as explicações sobre o substantivo, também é preciso tomar cuidado com o que se indica em relação ao gênero e ao significado.
Outro caso polêmico é o da palavra “dó”, que no dia a dia costuma aparecer como feminina (“a dó”), por mais que dicionários e gramáticas digam que é masculina (“o dó”). Parece que, na língua viva, na língua de hoje, o gênero de “dó” foi contaminado pelo de “pena”, um de seus sinônimos. Nos textos clássicos, no entanto, aparece como masculina, como se vê neste exemplo de A. F. de Castilho, citado pelo filólogo Antônio da Cruz e transcrito por Celso P. Luft: “Transluz o seu dó para com os judeus”.
A esta altura, convém lembrar que não existe explicação lógica ou racional para o gênero das palavras. Qualquer tentativa de comprovação lógica do porquê de uma palavra ser feminina ou masculina é pura perda de tempo. Em português, “leite” e “sal” são palavras masculinas; em espanhol (“leche” e “sal”), são femininas. Em português, “ponte” é palavra feminina; em italiano, é igualzinha (escreve-se “ponte”, que se lê “pónte”), mas é masculina. É por isso que em Florença, uma das cidades mais fascinantes do planeta, existe um lugar chamado “Ponte Vecchio” (“Ponte Velha”, em português). O adjetivo feminino é “vecchia”.
Gênero não se explica, não se comprova “cientificamente”. Não é questão matemática; é apenas resultado do uso. Que uso? Depende. Em se tratando de língua culta, vale o que se registra na linguagem culta formal, é claro.

Pasquale Cipro Neto

domingo, 13 de junho de 2010

O homem, a arte, as coisas

O facão de D. Quijote, a bondade de Sancho,
O Chapa que espreita,
O mínimo pássaro e a delicadeza,
O Duplo que pede reparos,
As almofadas em variados matizes,
O tapete fofo, as aconchegantes cadeiras,
O aparador sob a escada, a parede quente,
Os quadros re-dispostos para vagarosos olhares,
O cortinado reinventando a alcova.

O homem.
O homem e sua pele de pêssego,
Sua carne dura, seu falo
O olhar improvisado.
Minha presença incorpórea pregada no peito,
Cavando a distância e a ausência.
                    .
Ao revés de tudo, plastificamos a verdade.

                     

Teresa Magalhães

sábado, 12 de junho de 2010

O beco

















Vida estreita. A mãe cavernosa. Era para dentro, cavada, funda e obscura. A voz grave, como se guardasse toda a história na garganta. Rosto cansado, sulcado pelo tempo.
Na casa minguada, os filhos se acotovelavam. Um tinha montanha na alma, corredeiras de água doce, úmida floresta de sombras. O Outro carregava o mar, na cor dos olhos e nos sonhos. O horizonte o chamava, o longe. Alinhavavam a espera. Certo dia, o silêncio da casa sobressaltou a mãe. Lúgubre, abatumado. Pela primeira vez, espiou chorosa e demoradamente as gavetas vazias, enquanto se acostumava devagar com as ausências.

Teresa Magalhães

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Desenlace

















Aos borbotões, ela parte para o arremate.
O olho multicor vigia as frestas.
Roupa de festa.
Engate do vestido,
Antes de desabrochar a flor do corpo.

É de ouro e madrepérola o sonho da menina.
A esparramada esfera em botão vai pontuar,
uma a uma,
cada vértebra intocada.
Os dedos da tecelã prenunciam o desejo do homem,
que percorrerá sôfrego a coluna ereta.
Em suas mãos, o tecido tremula.
O jorro antecipado.
A língua aflita.


Teresa Magalhães

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Novigalhas


     Um certo Cristóvão morava não muito longe daqui, numa cidade pequena de terra inteira branca, quase areia. Ela toda parecia um holofote, vista de longe, com o sol a pino. Cercada por vales, cachoeiras e muitas, muitas cavernas. Construída sobre rochas sedimentares, caduca e revelhusca, com centenas de anos.     
     Antigalha a gente de lá. Nosso homem também. Era carunchoso nas idéias. Defendia obstinado a manutenção dos costumes, cultivando uma exacerbada macheza, de que muito se envaidecia. Mulher tinha que cuidar da casa, ir à igreja, usar roupas discretas. Cuidadoso no trabalho. Não ultrapassava a velocidade permitida, sempre usou cinto de segurança, nunca carregou excesso de carga em seu caminhão. Homem parrudo. Os músculos dos braços saltavam da manga curta da camisa. Caminhava com o peito estufado, ombro ereto. O eterno sorriso de satisfação desenhara rugas em torno dos olhos claros.
     Carmosa, sua mulher, parecia um poema de antíteses. A singeleza vertia dos olhos negros e a luxúria dos lábios carnosos. O andar macio e silencioso, o corpo esbelto gingava ritmado, povoando as fantasias dos homens. O pescoço longo sempre lhe deu uma aparência altiva, alheia à reverência masculina e à inveja das mulheres. Zelante e zelosa de suas obrigações domésticas, mas enfastiada de tédio. Não que não gostasse do marido. Gostava e muito. Porém, sua vida era tecer a espera. O companheiro sempre nos longes, arredado de seus olhos. Naquela cidade e tempo, mulher nunca trabalhou fora de casa. Escrevia desastrados sonhos, em um diário, momento em que fugia da vigilância alheia.
     Doía morar naquele fim de mundo, onde o vento rumorejava de tanta melancolia. O pavor desmesurado da solidão foi, pouco a pouco, cavando túneis em sua determinação de mulher honesta. O terreno movediço cederia a qualquer instante.
     Foi então que aconteceu o inevitável. Doutor Alcides enfeitiçou-se por ela, que nada fez, senão existir. Domingo e missa. Dia em que a viu pela primeira vez, tão linda e pudica. Entrava na igreja acompanhada por Cristóvão. Carmosa varria, para os subterrâneos da memória, o sentimento de solidão. A presença viril do marido cedia-lhe, temporariamente, a fiúza para deslizar como uma bailarina, com graça e finura. O doutor olhou-a tanto, que seu mirar fez estrondo dentro dela. Ensimesmou-se. Corada, abaixou as longas pestanas.
     O homem era acostumado ao mando, porém, vivia vida pacata, naquele avelhado lugarejo, onde o tédio fazia sombra ao poder. Casado há 20 anos com Maria Antonieta, tinha dois filhos: um moço e uma moça. Carmosa foi uma lufada de juventude, que reboliçou seu desejo então domesticado. Ficou obcecado por ela, perdeu o sono, a concentração. Queria tê-la. Não demorou a saber que Cristóvão vivia ausente, a maior parte do tempo. Era a fome de leão à vista da caça vulnerável.
     Para o afoito desejo, toda ligeireza é pouca. Uma semana depois, a assombrada vizinhança presenciou a chegada de um carro incomum à casa de Carmosa. Mas como? O marido ausente!Quem seria o homem encabritado que bateu à porta? O escuro interior da sala engoliu o inusitado visitante. Descautelosos, amaram-se à luz azul do entardecer. Esse foi apenas o primeiro dia de um sempiterno caso de amor.
     Quando Cristóvão retornou, pululavam maledicências, na pequena cidade. Carmosa não o esperava com o costumeiro sorriso. Cama desfeita, louça por lavar, quintal forrado de folhas. Experimentou um calafrio e uma dor aguda na boca do estômago. A casa oca e calada fez eco dentro dele.
     Havia festa do santo padroeiro. As barraquinhas coloridas pontilhavam de alegria a praça central. Ela faz sua novena, tranquilizou-se. Enquanto se barbeava, antegozou o olhar brando de Carmosa e sua boca ávida, o molhado sorriso que ela lhe oferecia, quando pega de surpresa. Arquejava, nos ansiosos passos. Mas encontrou-a, desconhecida essência, de braços dados com Doutor Alcides e sua esposa, Maria Antonieta.   Os três, foco do sorriso irônico das beatas.

Teresa Magalhães

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Sub-Missa


                                           
      A cerimônia começava. No púlpito, o capelão. Nem baixo, nem alto, rosto anguloso, peruca ruiva que arrumava num gesto delicado e obsessivo. Tinha o queixo enterrado no peito, como se pudesse esconder o esgar que lhe rasgava os lábios. Sua ironia molestava. Era um perfurar dentro, facafiada nas entranhas. As palavras certeiras feriam o público, no dardejante despropósito.
      Platéia tensa. Timorata.
      Celebrava a missa ao modo de quem representa uma tragédia de Ésquilo. Gestos demasiado caricatos, voz teatral e clara. Tempo psicológico, pausa necessária ao pouso do discurso no íntimo dos ouvintes. Todavia, alguns nem escutavam sua voz, viagirando em redemoinhos internos. Entre os fiéis, pessoas jovens, belas mulheres empertigadas, alheias ao discurso religioso. Outras velhavam, anuviadas pela preocupação, cavando coragem no solo pálido. Homens gordos, magros, freiras. Uma delas nova e triste, sorrindo bondades.
      Maria espiolhava a mulher de costas para ela, sentada no banco da frente. Os cabelos maltratados, adiposidade acumulada na cintura, braços espremidos no tecido grosseiro da blusa apertada. Rezava contrita. Ao lado, um rapaz bocejava entediado. À sua esquerda, Ana Luísa tentava dissimular o choro. Sabia que era seu último dia naquele grupo. A memória, suas raízes de concreto, as imagens do muito que modelou sua identidade, tudo semeado ali.
      Cabisbaixou-se.
      O cônego prosseguiu. Na boca, saltibailava aquele sorrisinho contido que tentava engolir, pigarreando em momentos alternados. ‘ Hoje, enquanto fazia a poda na roseira do jardim, alinhavava idéias para o sermão de hoje. Podar é purificar. Uma a uma, fui arrancando as velhas rosas para que as novas ganhassem espaço. Assim é com o ser humano.’
      É. Assim é com o ser humano. A frase ecoou, foice ceifando homens-pétalas, evanescentes e descartáveis. Ana Luísa, velhice antecipada, deixou escapar um soluço. O capelão olhou-a severo para compensar o riso sádico que controlava desde o princípio do culto. Muitos se entreolharam, em silenciosa cumplicidade. A trágica condição de cada um se agravou, dilatando a perplexidade da maioria. Pensamentos sombrios romperam diques. O terror estava disseminado. Ana Luísa teceu dentro de si o pedido de misericórdia, mas a palavra ficou encalacrada na boca do estômago.
      Dominus vobiscum.
      A missa interminável chegou ao fim. Eternidade suficiente para revisar um ano, uma década, uma vida de entrega. Catarse. Enquanto muitos choravam, o capelão desceu as escadas do altar. Lépido. Tinha a pressa dos amantes, momentos antes do encontro com o outro. Para trás, ficaram as mulheres e os homens em choque, palidez e olhos úmidos.
      Acta est fabula.

Teresa Magalhães

terça-feira, 1 de junho de 2010

Faces da palavra

       A palavra tem gosto, tem forma, tem idade. A palavra é gente. Ora, até nome ela tem. Itaquaquecetuba, desterritorialização, inconstitucionalissimamente são aquelas palavrinhas que fazem o sujeito engasgar.
       Há as que são docinhas, interioranas, brasileiras, manhosas, apaixonadas: amorzinho, florzinha, benzinho. Todos os "inhos" que lhes conferem certa particularidade e as torna diferentes do Português da terra do Saramago.
     As palavras envelhecem também. Guiso, mata-borrão, suspensório têm uma idade avançada. Permanecem nos livros, letras de música e na memória de quem viu o país pintar as caras e de quem viu um muro ser destruído. Outras palavras: borracha, lápis, compasso, parábola; podem ser de muita gente - criança, desenhista, matemático, gramático.
     E muita gente pode ser das palavras: Aurélio, Borges, Mindlin. Algumas habitam nosso corpo. Raiva, inveja, despeito e afins ficam ali pertinho do fígado. Carregam amargor por onde passam.
     Bombom, kiwi, pirulito, bolo - estas ficam nos olhos. Podemos vê-las quando bem entendemos. Dos olhos, vão direto para língua. Dançam na ponta, descem até a campainha e pegam impulso para chegarem ao céu. Grudam nas estrelas invisíveis e quando não podem mais, deixam-se cair e misturando-se à saliva, atravessam com suavidade a garganta.
     E antes mesmo de chegarem ao estômago, outras estão à sua espera. O medo, fundamental à nossa sobrevivência, fica de tocaia. Ao menor sinal de afoiteza, ele se manifesta.
     A saudade, carregada por borboletas azuis, causa sensação de frio. Pode ser saudade de quem mora perto, longe; de quem acabou de sair, de quem não vai voltar; de quem está distante, mesmo próximo. Pode ser doce, amena, dolorida. Mas é sempre verdadeira assim como o sabor que se inicia nos olhos.

Vera V.