Nenúfares

Nenúfares
Monet

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Sub-Missa


                                           
      A cerimônia começava. No púlpito, o capelão. Nem baixo, nem alto, rosto anguloso, peruca ruiva que arrumava num gesto delicado e obsessivo. Tinha o queixo enterrado no peito, como se pudesse esconder o esgar que lhe rasgava os lábios. Sua ironia molestava. Era um perfurar dentro, facafiada nas entranhas. As palavras certeiras feriam o público, no dardejante despropósito.
      Platéia tensa. Timorata.
      Celebrava a missa ao modo de quem representa uma tragédia de Ésquilo. Gestos demasiado caricatos, voz teatral e clara. Tempo psicológico, pausa necessária ao pouso do discurso no íntimo dos ouvintes. Todavia, alguns nem escutavam sua voz, viagirando em redemoinhos internos. Entre os fiéis, pessoas jovens, belas mulheres empertigadas, alheias ao discurso religioso. Outras velhavam, anuviadas pela preocupação, cavando coragem no solo pálido. Homens gordos, magros, freiras. Uma delas nova e triste, sorrindo bondades.
      Maria espiolhava a mulher de costas para ela, sentada no banco da frente. Os cabelos maltratados, adiposidade acumulada na cintura, braços espremidos no tecido grosseiro da blusa apertada. Rezava contrita. Ao lado, um rapaz bocejava entediado. À sua esquerda, Ana Luísa tentava dissimular o choro. Sabia que era seu último dia naquele grupo. A memória, suas raízes de concreto, as imagens do muito que modelou sua identidade, tudo semeado ali.
      Cabisbaixou-se.
      O cônego prosseguiu. Na boca, saltibailava aquele sorrisinho contido que tentava engolir, pigarreando em momentos alternados. ‘ Hoje, enquanto fazia a poda na roseira do jardim, alinhavava idéias para o sermão de hoje. Podar é purificar. Uma a uma, fui arrancando as velhas rosas para que as novas ganhassem espaço. Assim é com o ser humano.’
      É. Assim é com o ser humano. A frase ecoou, foice ceifando homens-pétalas, evanescentes e descartáveis. Ana Luísa, velhice antecipada, deixou escapar um soluço. O capelão olhou-a severo para compensar o riso sádico que controlava desde o princípio do culto. Muitos se entreolharam, em silenciosa cumplicidade. A trágica condição de cada um se agravou, dilatando a perplexidade da maioria. Pensamentos sombrios romperam diques. O terror estava disseminado. Ana Luísa teceu dentro de si o pedido de misericórdia, mas a palavra ficou encalacrada na boca do estômago.
      Dominus vobiscum.
      A missa interminável chegou ao fim. Eternidade suficiente para revisar um ano, uma década, uma vida de entrega. Catarse. Enquanto muitos choravam, o capelão desceu as escadas do altar. Lépido. Tinha a pressa dos amantes, momentos antes do encontro com o outro. Para trás, ficaram as mulheres e os homens em choque, palidez e olhos úmidos.
      Acta est fabula.

Teresa Magalhães

Um comentário:

  1. era este que eu já tinha lido e amado.
    das velhas rosas ceifadas brotam sementes em muitos outros terrenos, graças a Deus.
    obrigada por compartilhar seus sentimentos através da literatura.
    bê!!!!!

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