Nenúfares

Nenúfares
Monet

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Manias de Berenice

             À Joana, in memoriam

Berenice morreu de pneumonia dupla aos 82 anos. Livrou-se de alguns terrores da velhice: derrame, artrose, decrepitude. Não havia vestígio da beleza física da juventude, mas sua natureza bondosa tornava-a encantadora. Nem a pele amarrotada e fosca, os cabelos brancos, outrora negros, subtraíam-lhe o jeitinho de menina. Magra e lépida, alegre. Acordava às seis da manhã para rezar. Em voz alta. Um ritual doloroso pra os outros, pois se distraía e recomeçava a ladainha incontáveis vezes. Preparava o café e voltava pra cama. Dormia até tarde embora sofresse de ansiedade. Inventava vertigens que realmente sentia. Quando ia à missa, ficava na parte posterior da igreja, a fim de se apoiar nas paredes, caso tivesse tonturas. Tinha falta de ar, sem padecer dos males dos pulmões. Nascida em uma família numerosa – pai, mãe e nove irmãos - nunca teve a ousadia de expor seus caprichos. Vivia de forma muito simples, à sombra. Ficou cega de um olho aos 25 anos, tendo atravessado a existência ‘como Deus quis’. Cultivava antigas manias: não misturava manga com leite, não tomava banho com o estômago cheio. Tinha pavor de vento encanado. As pessoas achavam aquilo tudo engraçado. Mas ela sofria e não se libertou das limitações a que se obrigava.
Possuía pequenas vaidades: usava batom, óculos escuros para proteger o olho cego, não contava a ninguém a idade cronológica. Se alguém lhe perguntasse quantos anos somava, dizia: - Quanto pareço ter? E sorria em sua doce humildade.
Gostava de contar histórias.Certa vez, ensinava aos alunos as palavras oxítonas terminadas em al. Assim: Melhoral, sonrisal. Pediu que alguém desse um exemplo: - Quem quer se arriscar? Manoela, aluna e então sua empregada, respondeu: - Cebalena, professora! Narrava e ria. De outra feita, um pároco esteve em sua classe, perguntando quem gostaria de ser padre. Manoela levantou a mão. Essas e outras historietas foram para os anais da família.
Nos últimos anos de vida, enxergava muito pouco do olho bom. Nunca reclamou, embora não fosse mais sozinha à rua. Na hipótese de ter companhia, saía apoiada no braço do outro e caminhava titubeante, vasculhando o chão onde ia pisar, até que ocorreu o impremeditado: sujeitou-se à cirurgia dos olhos. Saiu do hospital enxergando melhor que a filha de 40 anos, com o benefício de lançar mão de uma prótese para o olho cego.
Berenice, que sonhava passar dos cem, morreu vinte anos antes, talvez vítima de seus medos. Em certo dia, sofreu uma fraqueza, dor nas costas, acompanhada de uma tossinha seca já antiga, parecida com pigarro de fumante. Recolheu-se mais cedo, sem nada comentar com a família. Quando notaram sua fragilidade, os pulmões estavam tomados por uma silenciosa pneumonia. Resistiu pouco tempo. Partiu sem importunar as pessoas, da forma delicada como conduziu sua vida.
Teresa Magalhães


segunda-feira, 26 de julho de 2010

Palavras de amor


















O grito, Edvard Munch

A mão, saindo do bolso com o lenço, trouxe junto um punhado de palavras soltas que, ao cair, esparramaram-se pelo chão.
Esse não era o propósito do dono da mão, que apenas queria tirar o lenço para limpar as lentes dos óculos. Foi uma cena muito constrangedora, porque o amigo, naquele momento voltando da caixa onde fora comprar fichas para o café, acabou vendo as palavras caindo no chão. O dono delas e da mão que as derrubou de maneira tão desastrosa em lugar e hora inoportunas ficou vermelho de vergonha. Além do amigo, mais gente viu aquilo. E ajudaram a apanhar as palavras do chão espalhadas por todos os cantos do bar como contas de um colar que se parte. Algumas voltaram quebradas em duas ou mais letras pela queda e trituradas sob os pés descuidados dos fregueses. Eram palavras de amor. Desse tipo de amor que a gente só expressa com palavras quando de encontra no ponto mais alto da paixão. Ele, o dono dessas palavras, atingira esse ponto. E seus bolsos estavam cheios de palavras sobre o assunto. Elas precisavam ser entregues à destinatária. Com urgência. (...)
Ela não foi ao encontro. Procurou o amigo que já havia saído sem deixar recado para onde. O dono das palavras estava só. Foi até a casa dela. Não sabiam informar onde havia ido. Ficou esperando na esquina e eram mais de duas horas quando um senhor que passou por ali lhe perguntou se eram dele aquelas palavras caídas no chão. Agradeceu sem jeito e as apanhou, mas em todos os bolsos do paletó, calça e camisa não havia mais lugar para elas, que começavam a transbordar. Voltou para casa com as palavras na mão. Quando entrou em seu quarto, já eram tantas, que ele as segurava arcado fechando-se entre o peito e os braços. Jogou-as sobre a mesa. O resto da noite, ou melhor, da madrugada, passou acordado esforçando-se para não produzir mais palavras. Mas elas continuavam brotando sem cessar. Deixou a cama, foi até o telefone. Ela não havia chegado. O caminho entre seu quarto e a sala onde estava o telefone ficou forrado de palavras que caíam pesadas nos tapetes macios. E nasciam maiores, uma só delas não caberia agora no bolso mais largo de seu paletó. Para que sua mãe não visse ao se levantar, e isso seria dentro de uma hora e pouco, ele começou, com dificuldade, a pegar todas que estavam jogadas pela sala e foi levando para o quarto. Mas, quando se abaixava para apanhar uma, outras caíam de seu corpo, tendo mesmo uma de tão grande e pesada lhe ferido o pé em que bateu. Tentou então pegar na cozinha um puxador de água. De nada serviu dado o tamanho das últimas palavras que surgiam.
O melhor que tinha a fazer portanto era deixar na cozinha, corredor e sala aquelas que por ali ficaram e foi correndo trancar-se no quarto. Abriu a janela, mas, ao se debruçar para prender do lado de fora as folhas da veneziana, várias palavras do tamanho de um sapato desprenderam-se, indo bater lá embaixo, na coberta de zinco da garagem, fazendo grande barulho. Imediatamente, com receio de ser visto, fechou a janela novamente, ao dirigir-se à cama onde pretendia dormir para livrar-se do fluxo crescente de palavras, tropeçou numa delas, foi ao chão, enquanto outras, de mais de meio metro de espessura e pesando quase seis quilos, surgiam, amontoando-se sobre seu corpo. Que ali ficou soterrado. E assim sua mãe encontrou o filho que morreu de amor.

Nelson Coelho,  - (Monte Santo de Minas, 1928) é um romancista e contista brasileiro, jornalista e crítico de arte.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Primavera tardia













Primavera, de Salviano Santos


Ele chegou à minha vida bem depois, quando eu era mais substância, orvalho e sonho.
O tempo decantara muita coisa ruim, mas, ao rés- do- chão,
sobejou o pó, o rosário de perdas, que me assombrava o presente.
Era acostumado à flor do cerrado, ao perfume amarelo do pequi, ao mais belo pôr-do-sol.
Dava loas ao novo.
Nem o último, nem o primeiro dia.
Era a passagem respingada por fogos de artifício.

Teresa Magalhães

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Alfabeto Amoroso

O beijo, de Gustav Klimt.


Danadezas? Muitas. Era trilhado em cortesias também. Fazia misérias com o verbo e aventurava-se em toda sorte de desatinos. Mal o dia se espreguiçava, afiava a língua e prosiversava palavras encantatórias. Provocava desejos enterrados sob sete véus, espertava a maluquez adormecida, cobria carências que o tempo deposita nas mulheres abandonadas. As donas se pavoneavam cobrando-lhe um mimo. Quirelas de atenção. Ele, apenas um, carregava a liberdade e o cativeiro. Era uma dualidade sem-fim. Duplo por natureza, ensaiava antagonices. Masculino e feminino. Destemido e assombrado. E se doía de tantasnices por querer Berenice e Clarice. Outra hora, Antônia e Beatriz. Seus quereres transitavam dos olhos verdes sombreados de uma, para os quadris luminosos de outra. Mergulhava no sorriso de Antônia, flutuava na doçura de Beatriz. Ziguezagueante, titubeou entre delícias e angústias. Serenava, por vezes. Intuía-se? Perseguia a primeira satisfação inscrita na alma.
Casado. E não havéra de ser? A moça, linda flor do cerrado, olhos de amêndoas doces, o corpo, uma caldeira de aromas. Enfeitiçou o rapaz esbelto, risonho, de voz grave e aveludada. Teve a alma marcada como o couro da rês no pasto. No princípio, felizes. Prenhes de amanhãs, sonhavam com a prole, com o dinheiro se acumulando, as viagens. Cedo. O tempo primordial do amor.


Toda via...


A memória oculta de outras épocas pulsava dentro dele. Invasora, fazendo reino em seu espírito livre. Foi se alheando do presente, devagar. A saudade latente de outros perfumes, outras sedas, outras vozes. Maria – a esposa - acomodou-se no trivial. Absorta. João rendeu-se a fantasias e devaneios. Primeiro foi o silêncio de Madalena, a vizinha. As idéias escondidas na mudez, que o olhar anunciava, o atraíam sobremaneira. Depois Estela, leal esposa de seu melhor amigo. Toda brilho, alumiando suas noites insones. Um rosário de nomes e quereres: Aurélia, Cristina, Jamile, Raimunda, Selma, Tatiana. Enfim, chegou à letra z. Zélia, a gótica. Seu corpo era uma catedral com janelas rendadas. A pele branquinha, a essência anunciada nos olhos azuis. João embriagou-se de tanto amar. Descuidou-se dos compromissos, distraiu-se dos filhos, da esposa, da casa. Engolfou-se dentro e fundo. O amor dissolvido nas entranhas de Zélia das tardes lânguidas e noites vertiginosas. Seu rumo e rima.

Sina.


Voltava ao lar, na ponta dos pés, deitava-se no claro-escuro leito de Maria. A melancolia de seus olhos antigos foram maculando a leveza do homem apaixonado. Então percebeu Maria sem leme, a casa, um barco desgovernado. O brilho de Zélia, desbotado em meio às incertezas. O dissabor da consciência foi tecendo uma teia de dúvidas entre as margens. Em incerta manhã, a esposa sobressaltou-se com o que viu: João amanhecera rasgado. Uma fenda profunda separava-o em duas metades. Com a calma resignada das mães, arrebanhou os filhos. Partiu sem olhar para trás. João. Esfrangalhado e entregue a si mesmo, conheceu os subterrâneos da solidão.
De repente, pontuando os tempos esgarçados, bateram à porta. Era Ângela, cerzideira como ninguém. Ouviu uma nesga de voz, quase inerte. Para ela, sussurros, que a encorajaram a entrar. Sem pressa, recolheu os retalhos do homem que seria seu novo amor.
   
  Teresa Magalhães

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Não confunda 'de encontro a' com 'ao encontro de'


Colisão entre pássaro e aeronave

De encontro a é uma locução que dá ideia de contrariedade, de choque, oposição. O pássaro foi de encontro à aeronave.
Ao encontro de se usa nos casos de conformidade de ideias, de situação favorável.  O choque entre o pássaro e a aeronave impediu que o piloto fosse ao encontro da namorada.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Genialidade ou Loucura?




















A Psicologia nunca poderá dizer a verdade sobre a loucura,
pois é a loucura que detém a verdade da Psicologia.

Michel Foucault

Arthur Bispo do Rosário, artista brasileiro, nascido no Sergipe, era considerado esquizofrênico- paranoico. Passou 50 anos de sua vida internado na Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, onde morreu em 1989. Em seus delírios, recebeu a missão de recriar o universo para apresentar a Deus no dia do Juízo Final. Usava sucatas e lixo como material de trabalho. Frederico Morais organizou sua obra e a dividiu em segmentos: 1- o texto: nos estandartes bordados; 2- as roupas: o Manto da Apresentação e os fardões; 3- os objetos: ready-made mumificados (enrolados por linhas muitas vezes conseguidas ao desfiar seu uniforme hospitalar) e construídos (barcos, miniaturas); 4- as assemblagens ou vitrines, como dizia o artista. Foi comparado a Marcel Duchamp, pintor e escultor francês, criador da ready made, que significa o transporte de um elemento da vida cotidiana, para o campo das artes.
 
 

domingo, 4 de julho de 2010

O claro-escuro em Van Gogh








A madrugada tem o mau cheiro de abismo.
Despenhadeiro íntimo,
cego para os astros
que fosforescem.


Teresa Magalhães