Nenúfares

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Monet

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Palavras de amor


















O grito, Edvard Munch

A mão, saindo do bolso com o lenço, trouxe junto um punhado de palavras soltas que, ao cair, esparramaram-se pelo chão.
Esse não era o propósito do dono da mão, que apenas queria tirar o lenço para limpar as lentes dos óculos. Foi uma cena muito constrangedora, porque o amigo, naquele momento voltando da caixa onde fora comprar fichas para o café, acabou vendo as palavras caindo no chão. O dono delas e da mão que as derrubou de maneira tão desastrosa em lugar e hora inoportunas ficou vermelho de vergonha. Além do amigo, mais gente viu aquilo. E ajudaram a apanhar as palavras do chão espalhadas por todos os cantos do bar como contas de um colar que se parte. Algumas voltaram quebradas em duas ou mais letras pela queda e trituradas sob os pés descuidados dos fregueses. Eram palavras de amor. Desse tipo de amor que a gente só expressa com palavras quando de encontra no ponto mais alto da paixão. Ele, o dono dessas palavras, atingira esse ponto. E seus bolsos estavam cheios de palavras sobre o assunto. Elas precisavam ser entregues à destinatária. Com urgência. (...)
Ela não foi ao encontro. Procurou o amigo que já havia saído sem deixar recado para onde. O dono das palavras estava só. Foi até a casa dela. Não sabiam informar onde havia ido. Ficou esperando na esquina e eram mais de duas horas quando um senhor que passou por ali lhe perguntou se eram dele aquelas palavras caídas no chão. Agradeceu sem jeito e as apanhou, mas em todos os bolsos do paletó, calça e camisa não havia mais lugar para elas, que começavam a transbordar. Voltou para casa com as palavras na mão. Quando entrou em seu quarto, já eram tantas, que ele as segurava arcado fechando-se entre o peito e os braços. Jogou-as sobre a mesa. O resto da noite, ou melhor, da madrugada, passou acordado esforçando-se para não produzir mais palavras. Mas elas continuavam brotando sem cessar. Deixou a cama, foi até o telefone. Ela não havia chegado. O caminho entre seu quarto e a sala onde estava o telefone ficou forrado de palavras que caíam pesadas nos tapetes macios. E nasciam maiores, uma só delas não caberia agora no bolso mais largo de seu paletó. Para que sua mãe não visse ao se levantar, e isso seria dentro de uma hora e pouco, ele começou, com dificuldade, a pegar todas que estavam jogadas pela sala e foi levando para o quarto. Mas, quando se abaixava para apanhar uma, outras caíam de seu corpo, tendo mesmo uma de tão grande e pesada lhe ferido o pé em que bateu. Tentou então pegar na cozinha um puxador de água. De nada serviu dado o tamanho das últimas palavras que surgiam.
O melhor que tinha a fazer portanto era deixar na cozinha, corredor e sala aquelas que por ali ficaram e foi correndo trancar-se no quarto. Abriu a janela, mas, ao se debruçar para prender do lado de fora as folhas da veneziana, várias palavras do tamanho de um sapato desprenderam-se, indo bater lá embaixo, na coberta de zinco da garagem, fazendo grande barulho. Imediatamente, com receio de ser visto, fechou a janela novamente, ao dirigir-se à cama onde pretendia dormir para livrar-se do fluxo crescente de palavras, tropeçou numa delas, foi ao chão, enquanto outras, de mais de meio metro de espessura e pesando quase seis quilos, surgiam, amontoando-se sobre seu corpo. Que ali ficou soterrado. E assim sua mãe encontrou o filho que morreu de amor.

Nelson Coelho,  - (Monte Santo de Minas, 1928) é um romancista e contista brasileiro, jornalista e crítico de arte.

5 comentários:

  1. Lendo o conto, não pude deixar de me lembrar do Ignácio de Loyola Brandão. Precisamente, do conto "O homem cuja orelha cresceu".
    Gosto do Ignácio. A narrativa dele me prende, da mesma forma que a do Nelson agora. Comecei a ler e pensei: "Onde tanta palavra de amor vai dar, meu Deus?!"
    Pena que o fim tenha sido tão trágico. Só faltou o menininho do Ignácio aparecer e perguntar: "Por que o senhor não mata o dono da orelha (das palavras de amor)?"
    Mas nem precisou. Ele morreu soterrado de tanto amor.

    [acho que passarei a ter cuidado. vai que uma hora minha tagarelice me mata? eu, hein?!]

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  2. Veroca,

    Há um velho ditado que diz: En boca cerrada no entran moscas. É bom mesmo se cuidar, especialmente se o receptor não souber ler.
    ;-)

    Teresa.

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  3. Senti a mesma coisa quando li este conto, pois já li também o conto do Ignácio e logo me veio à cabeça, antes mesmo de ter visto o comentário da Vera.
    O amigo que o acompanhava no café é muito é machista, insensível, deixou ele lá, sozinho! As palavras dele escapavam [literalmente] tal qual uma declaração de amor em público. Só falta a mocinha aparecer.

    beijos!

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  4. Que desperdício.Teria ele se apressado ou ela se atrasado?Talvez não fosse o tempo certo pra tantas palavras e tanto amor.Belo conto.
    PS:Volto outra hora.Caíram monte de letrinhas nos meus pés agora.

    LB

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  5. O conto é simplesmente lindo. Pena que a versão, aqui, está com um corte imenso. ;-)

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