Nenúfares

Nenúfares
Monet

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Alfabeto Amoroso

O beijo, de Gustav Klimt.


Danadezas? Muitas. Era trilhado em cortesias também. Fazia misérias com o verbo e aventurava-se em toda sorte de desatinos. Mal o dia se espreguiçava, afiava a língua e prosiversava palavras encantatórias. Provocava desejos enterrados sob sete véus, espertava a maluquez adormecida, cobria carências que o tempo deposita nas mulheres abandonadas. As donas se pavoneavam cobrando-lhe um mimo. Quirelas de atenção. Ele, apenas um, carregava a liberdade e o cativeiro. Era uma dualidade sem-fim. Duplo por natureza, ensaiava antagonices. Masculino e feminino. Destemido e assombrado. E se doía de tantasnices por querer Berenice e Clarice. Outra hora, Antônia e Beatriz. Seus quereres transitavam dos olhos verdes sombreados de uma, para os quadris luminosos de outra. Mergulhava no sorriso de Antônia, flutuava na doçura de Beatriz. Ziguezagueante, titubeou entre delícias e angústias. Serenava, por vezes. Intuía-se? Perseguia a primeira satisfação inscrita na alma.
Casado. E não havéra de ser? A moça, linda flor do cerrado, olhos de amêndoas doces, o corpo, uma caldeira de aromas. Enfeitiçou o rapaz esbelto, risonho, de voz grave e aveludada. Teve a alma marcada como o couro da rês no pasto. No princípio, felizes. Prenhes de amanhãs, sonhavam com a prole, com o dinheiro se acumulando, as viagens. Cedo. O tempo primordial do amor.


Toda via...


A memória oculta de outras épocas pulsava dentro dele. Invasora, fazendo reino em seu espírito livre. Foi se alheando do presente, devagar. A saudade latente de outros perfumes, outras sedas, outras vozes. Maria – a esposa - acomodou-se no trivial. Absorta. João rendeu-se a fantasias e devaneios. Primeiro foi o silêncio de Madalena, a vizinha. As idéias escondidas na mudez, que o olhar anunciava, o atraíam sobremaneira. Depois Estela, leal esposa de seu melhor amigo. Toda brilho, alumiando suas noites insones. Um rosário de nomes e quereres: Aurélia, Cristina, Jamile, Raimunda, Selma, Tatiana. Enfim, chegou à letra z. Zélia, a gótica. Seu corpo era uma catedral com janelas rendadas. A pele branquinha, a essência anunciada nos olhos azuis. João embriagou-se de tanto amar. Descuidou-se dos compromissos, distraiu-se dos filhos, da esposa, da casa. Engolfou-se dentro e fundo. O amor dissolvido nas entranhas de Zélia das tardes lânguidas e noites vertiginosas. Seu rumo e rima.

Sina.


Voltava ao lar, na ponta dos pés, deitava-se no claro-escuro leito de Maria. A melancolia de seus olhos antigos foram maculando a leveza do homem apaixonado. Então percebeu Maria sem leme, a casa, um barco desgovernado. O brilho de Zélia, desbotado em meio às incertezas. O dissabor da consciência foi tecendo uma teia de dúvidas entre as margens. Em incerta manhã, a esposa sobressaltou-se com o que viu: João amanhecera rasgado. Uma fenda profunda separava-o em duas metades. Com a calma resignada das mães, arrebanhou os filhos. Partiu sem olhar para trás. João. Esfrangalhado e entregue a si mesmo, conheceu os subterrâneos da solidão.
De repente, pontuando os tempos esgarçados, bateram à porta. Era Ângela, cerzideira como ninguém. Ouviu uma nesga de voz, quase inerte. Para ela, sussurros, que a encorajaram a entrar. Sem pressa, recolheu os retalhos do homem que seria seu novo amor.
   
  Teresa Magalhães

7 comentários:

  1. Posso?

    Meu preferido depois de Mutação.
    Sempre que leio você, fico envolvida pela mesma sensação de quando encontro as palavras do G. Rosa e de Clarice.

    Beijo e obrigada por me fazer amar cada vez mais o conhecimento.

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  2. João é um safadinho, viu. Mesmo assim, um homem cheio de fantasias, em todos os sentidos...lindo conto. Esperava-se que, pelo conteúdo, surgiria altas cenas, mas você soube como ninguém suavizar cada detalhe. Continue assim, com contos como esse rs.

    Um beijo.

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  3. "Sem pressa, recolheu os retalhos do homem que seria seu novo amor"
    Beleza de conto e de imagens colocadas em palavras.
    A mim só resta saudar.
    Ave, Palavra!

    LB

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  4. Seu rumo e rima.
    Sina.

    Será sua sina escrever textos de leitura tão macia e marcante. Parabens

    Clarice iri adorar

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  5. Puxa vida,

    há tempos não lia uma história tão bem escrita e tão cheia de sentido. Textos assim até me trazem alegria em repensar possibilidades para a literatura que se constrói hoje.

    Farei deste um de meus espaços de leitura.
    Um grande abraço e até as próximas palavras.

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  6. lembrei do conto dos ossos do livro de Clarissa Pinkola Estés, "Mulheres Que Correm Com Os Lobos".
    uma visão poética da natureza humana, que nunca deixa de se relacionar.

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  7. Esta imagem foi me muito utilpara um trabalho

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