Nenúfares

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Monet

domingo, 5 de setembro de 2010

Palavrando

Umberto Eco, escritor e semiólogo italiano, diz que ' para contar é necessário primeiramente construir um mundo, o mais mobiliado possível. Constrói-se um rio e na margem esquerda coloca-se um pescador, e, se esse pescador possui um temperamento agressivo e uma folha penal pouco limpa, pronto: pode-se começar a escrever. Que faz um pescador? Pesca. E depois? (...) E se, levado pela correnteza, passasse um cadáver? Não se pode esquecer que o meu pescador tem uma folha penal suja. Quererá correr o risco de meter-se na enrascada? Fugirá, fingindo não ver o cadáver? Temperamental como é, ficará furioso por não ter realizado ele próprio a sonhada vingança? Como se vê, bastou mobiliar nosso mundo e já se tem o início de uma história. O problema é construir o mundo, as palavras virão quase por si sós.'
 
Que tal construir um mundo? A ideia é criar histórias insólitas. Eu começo. Você continua e vamos alinhavando palavras, cenas, personagens situados em um tempo e um espaço. Conflitos, emoções reinventadas. Vamos lá?
 


O sobrado de Aurélia
Aurélia de Alcântara herdou um sobrado. Ficava  em uma rua escura, camuflado entre árvores altas e frondosas. Quando foi construído, no fim do século XIX, ali era uma fazenda. O edifício tinha paredes brancas, hoje cobertas pela umidade e pelo abandono. Outrora, janelas e portas pintadas com cores vibrantes coloriam a paisagem. No século XX, havia palidez nas cores. A construção dava ênfase aos telhados, possuía porão e sótão, escadaria de madeira. Os quartos do pavimento superior tinham janelas ovaladas que misteriosamente ainda se abriam. Olhos que espiavam. O andar social possuía salas espaçosas, a biblioteca, a antiga e aconchegante saleta de jogos, ainda o compartimento com mesa para doze pessoas. O acervo de arte reunia obras de artistas brasileiros e europeus. Cozinhas, área de serviço. Na parte externa, grande quantidade de quartos onde dormia a criadagem. Do enorme gramado restou um mataréu.

A casa, que acolheu quatro gerações, teve seu tempo de majestade, momento em que os primeiros Alcântaras tinham os filhos pequenos e a maior produção cafeicultora da região. Atualmente, dizem, é mal assombrada. Os vizinhos contavam que às sextas-feiras as luzes se acendiam e o jazz antigo adentrava a madrugada, causando calafrios nos que moravam pelas imediações.

Aurélia era uma das últimas descendentes da família. Dramaturga. Magra, aparência frágil, círculo escuro ao redor dos olhos. Hesitante, chegou para tomar posse da propriedade. Sabia dos rumores que corriam a respeito do imóvel. O ambiente lúgubre, vidros quebrados, o interior coberto de teias de aranha, os móveis revestidos por um tecido amarelecido e empoeirado, provocaram-lhe um tropel de arrepios.  Chegou acompanhada de sua inseparável amiga Clara, que em tudo lhe era oposta: gorda, decidida e curiosa. O que causava arrepio a uma, para a outra era desafio. Clara, moça prática e de sorriso fácil, percebeu o terror de Aurélia. Fez um discurso desenfreado sobre os  projetos mirabolantes que realizariam: os funcionários contratados  trabalhariam bravamente. As escadarias de madeira seriam restauradas, os móveis descobertos, tudo seria cuidadosamente limpo e organizado. O matagal que circundava o terreno seria retirado. Aos poucos, pintariam a casa, consertariam os balanços do jardim, arrumariam as rachaduras da piscina.

Mas nem Aurélia e muito menos a amiga imaginavam o que teriam que enfrentar, para dar uma finalidade útil à herança. Clara ainda percorreu seus olhos atentos pela imensidão do ambiente, quando sentiu-se atraída por um cômodo à sua esquerda. Ficava a poucos passos de onde estava e foi com o coração aos pulos que ela se dirigiu ao local. Ao tentar abrir a porta, o trinco fez o caminho de volta sem se destravar.

- Aurélia, venha aqui! O que tem neste quarto?

 Sua voz era firme. Puxando a mão da herdeira, convidou-a para forçar com o peso do corpo a entrada daquele lugar que, de alguma forma, parecia estar à espera de ambas.O silêncio era sinistro e qualquer ruído tomava dimensões apavorantes. Aurélia se perturbava até mesmo com o estalar do piso centenário e com baratas que faziam explorações rotineiras, pelas paredes da casa. Sua amiga, bem mais confiante e com faro investigativo, girou novamente o trinco sofisticado da porta, dessa vez puxando-a de leve para si. A porta bem escura, mas conservada, abriu-se. As duas entraram olhando para o piso que rangia, bastante incomodadas por uma irritação nos olhos e um odor fortíssimo que entrava voraz em suas narinas

O quarto era iluminado por uma fresta de luz vinda das janelas empoeiradas. Estantes e mais estantes com recipientes enormes de vidro repletos de aranhas e outros bichos afogados em formol. Um falso esqueleto,suspenso por um tripé, parecia mexer-se. Após alguns minutos, Aurélia e sua amiga já observavam com atenção todos aqueles vidros e outros objetos, que destoavam de tudo, no palacete . Clara se dirigiu à janela para abri-la, alumiando o ambiente opressivo e espantando o cheiro misto de mofo e  formol . O sol quentinho invadiu o espaço tomando todos os lugares, até mesmo outros mais obscuros. O teto de arquitetura ímpar capturou a atenção de Aurélia por alguns segundos.  Lembrou-se:

Ah...este é o quarto de meu primo Thirso. Era dado a certas manias, como se vê aqui. Catalogava pequenos insetos e bichos da fazenda. Dizia sempre que o Brasil ainda o reconheceria como um grande biólogo que não era! Trouxe da Europa esse esqueleto, que dizia ser o resto de uma amada que morrera em seus braços, em Paris. 

Ouviu-se a sonora gargalhada de Clara.

No mesmo instante, as duas escutaram um rouco sussurro, acompanhado de um ventinho gelado. O som parecia vir do assoalho. Foi crescendo, crescendo, até se transformar em grito agudo.Os olhares de ambas se cruzaram e, tomadas pelo pavor, deram um passo para trás. O rosto pálido de Aurélia e suas mãos geladas procuraram segurança em Clara, que já amparava a amiga.

- Credo!!! A interjeição ouvida pareceu-lhes um ribombar de sineta em escocla primária d´antanhos. Giraram sobre os próprios pés e encontraram a amável Aninha, caseira do velho sobrado. - Vamos colher amoras? É mais agradável do que imaginar alucinações e medos.
E Aninha continuou: sou do tempo em que se dizia que 'em se plantando tudo dá.' E lá foram as duas mulheres, sob o comando da caseira, conhecer o pomar da casa e suas amoreiras. Que deslumbre de cores e frutos!

Andaram em círculo, seguindo o caminho feito pelas formigas e sentaram-se à sombra da árvore.

A voz do comandante interrompeu minha leitura e informou: tripulação, pouso autorizado! Coloquei minha poltrona na posição vertical. Fechei o livro e o devolvi com um sorrizinho meio sem graça. De São Paulo a  Ribeirão Preto o tempo é muito curto. O livro me chamou a atenção pelo título : O sobrado de Aurélia. Afinal, Aurélia era o nome da minha gata.

Este texto é  resultado da criação coletiva, que contou com a participação de Vera V., Cláudia A., Nícolas M., Adriana G., Salviano S., Teresa M.

19 comentários:

  1. Chega acompanhada de sua inseparável amiga Clara, que em tudo lhe é oposta: gorda, decidida e curiosa. O que causa arrepio a uma, a outra é desafio.

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  2. Mas nem Aurélia, e muito menos a amiga imaginavam o que teriam que enfrentar para dar uma finalidade útil à herança. Clara ainda percorria seus olhos atentos pela imensidão do ambiente quando sentiu-se atraída para um cômodo à sua esquerda. Ficava a poucos passos de onde estavam e foi com o coração em pulos que ela se dirigiu até lá. Ao tentar abrir a porta, o trinco fez o caminho de volta sem se destravar.
    - Aurélia, venha até aqui! O que tem neste quarto?
    Sua voz saiu como um sussurro. E puxando a mão da herdeira, convidou-a para forçar com o peso de seus corpos a entrada daquele lugar que de algum jeito parecia estar à espera de ambas.

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  3. O quarto tinha uma fresta de luz vinda das janelas empoeiradas. Estantes e mais estantes com recipientes enormes de vidros repletos de aranhas e outros bichos afogados em formol. Um esqueleto falso suspenso por um tripé parecia mexer-se.

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  4. Ah...este é o quarto de meu primo Thirso. Era dado a certas manias, como se vê aqui. Catalogava pequenos insetos e bichos da fazenda. Dizia sempre que o Brasil ainda o reconheceria como um grande biólogo que não era! Trouxe da Europa esse esqueleto, que dizia ser o resto de uma amada que morrera em seus braços, em Paris.
    Ouviu-se a sonora gargalhada de Clara.

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  5. O silêncio era sinistro e qualquer ruído tomava dimensões apavorantes. Aurélia se perturbava até mesmo com o estalar do piso centenário e com baratas que faziam explorações rotineiras, pelas paredes da casa. Sua amiga, bem mais confiante e com faro investigativo, girou novamente o trinco bem trabalhado da porta, dessa vez puxando-a de leve para si. A porta bem escura, mas conservada pelo tempo, abriu-se. As duas entraram olhando para o piso, bastante incomodadas por uma irritação nos olhos e um odor fortíssimo que entrava voraz em suas narinas .

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  6. Os olhares de ambas se cruzaram e, tomadas pelo pavor, deram um passo para trás. O rosto pálido de Aurélia e suas mãos geladas procuraram segurança em Clara, que tentava proteger a amiga.

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  7. Após alguns minutos, Aurélia e sua amiga já observavam com atenção todos aqueles vidros
    e outros objetos, que destoavam de todo o resto. Clara se dirigiu à janela para abri-la, clareando o ambiente abafadiço, espantando o cheiro de mofo e do formol que conservava todos aqueles seres. O sol quentinho invadiu o espaço tomando todos os lugares e até mesmo outros que não se destacaram com a pouca luz. O teto de arquitetura ímpar capturou a atenção de Aurélia por alguns segundos.

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  8. - Credo!!! A interjeição ouvida pareceu-lhes um ribombar de sineta em escocla primária d´antanhos. Giraram sobre os próprios pés e encontraram a amável Aninha, caseira do velho sobrado. - Vamos colher amoras? É mais agradável do que imaginar alucinações e medos.

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  9. E Aninha continuou: sou do tempo em que se dizia que em se plantando tudo dá. E lá foram as duas mulheres, sob o comando da caseira, conhcer o pomar da casa e suas amoreiras. Que deslumbre de cores e frutos!

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  10. (Posso continuar?)
    Está perto do final?
    Vai ter bolo para comemorar?
    Aguardo orientações.

    Beijo!

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  11. A voz do comandante me interrompe a leitura e informa:tripulação pouso autorizado. Coloco minha poltrona na posição vertical. Fecho o livro e o devolvo com um sorrizinho meio sem graça. De São Paulo prá Ribeirão Preto o tempo é muito curto. O livro, me chamou a atenção, pelo título : O sobrado de Aurélia. Aurélia era o nome da nossa gata.

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  12. Andaram em círculo, seguindo o caminho feito pelas formigas e sentaram-se à sombra da árvore.

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  13. Ora, ora... A Clara era uma gata e virou gente. Aurélia era uma gente que virou gata. Tinha cogumelo no pomar?

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  14. Caros coautores, penso que Salviano concluiu o texto. O que acham?

    Brô, Aurélia é o nome da minha gata. Por fim, tivemos duas gatas humanizadas, numa história que se pretendia de terror. Risos

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  15. Teresa, ainda acho que tinha cogumelo no pomar!!!

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  16. Começou com um sobrado misterioso, depois algumas passagens cômicas, terminando em um avião. Quem diria.

    Quero parabenizar o Salviano. Afinal, passou a importante mensagem de que realmente imaginamos um mundo quando lemos.

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  17. Gostei da experiência. E fiquei muito feliz com o final que o Salviano elaborou.

    Beijo.

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  18. ...estou aprendendo tanto, quanto e como com vocês, postanTeresadoadoresmáticas(o) .inspiro, expiro...inspiram-me.

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  19. Brô, quer continuar a história? Bóra, então. Aguardo seu texto.

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