Nenúfares

Nenúfares
Monet

sábado, 18 de setembro de 2010

Palavrando II

Salvador Dali





O engolidor de sonhos

          Mulata, cabelos semelhantes à lã, fisionomia empapuçada. Assunta era seu nome. Aos 40 anos teve um filho tardio. Deu-lhe o estranho nome de Onírico, porque acreditava no valor premonitório dos sonhos. Sua boca franzia ao pronunciar o nome do garoto. As vogais fechadas desenhavam um ó com os lábios: O-ní-ri-co. As meninas – eram 3 – já estavam na universidade. Uma estudava Matemática. A primogênita, Letras, e a mais apegada ao irmão, Jornalismo. Assunto diferente não faltava em casa. Enredos de romances, de notícias trágicas e escândalos políticos misturavam-se aos comentários sobre aritmética, trigonometria e equações, na hora do jantar.
         Em certo dia, o filho ouviu uma de suas irmãs dizer à mãe sobre um sonho muito bom que tivera, mas de que não se recordava muito bem. Subitamente, o menino abandonou o cômodo onde estavam, e foi para seu quarto. Esperou alguns instantes até que irmã que lidava com números ficasse sozinha. Correu até ela. Tomou-lhe a mão e pediu que o levasse para um pequeno passeio. Ela o seguia,  em linha reta, quando Onírico pediu que ela dobrasse à esquerda.
        - Você não disse um pequeno passeio, menino? Não podemos demorar muito, temos que chegar antes que o jantar esteja pronto.Um murmúrio do menino a convenceu, e assim ela o acompanhou. E lá estava o mesmo campo florido dos sonhos dela...
         A irmã não podia acreditar no que viu. Assombrada, olhava o irmão, olhava o mundo enramalhetado e não sabia se o que experimentava era devaneio ou realidade. Arrebatada pela atmosfera de sonho, correu pela campina, de mãos dadas com Onírico, até que chegou a hora de voltar a casa. Ela lhe prometeu segredo e retornaram.
A moça dos números era a mais cética das três, talvez por isso tenha ficado bastante perturbada com o ocorrido. Que poder tinha Onírico de penetrar o cenário dos  sonhos?   O campo era lindo e simples,matutava... Por quê, então, ela nunca o vira, em suas caminhadas pelos arredores?
-Vamos, garoto!  Já abusamos da hora.
        Ao chegarem, sentarem-se à mesa, sob o olhar aflito da mãe. Por que demoraram tanto?O jantar com todos reunidos era costumeiro e esperado. Onírico não incomodava mais ninguém ali com suas excentricidades
, mas, em momentos de quietude,  ele se culpava ingenuamente. Quando mais novo, não se dava conta de que tinha um pequeno problema que o diferenciava dos demais e até mesmo incomodava alguns. Agora, com dez anos,  cultivava uma angústia precoce. Todos da casa sabiam que o garoto passava pela fase dos questionamentos e das incertezas. A sua companheira de passeio comia vagarosamente, desejando que alguém rompesse o silêncio, falando sobre o que se passava. A futura jornalista da família percebeu o comportamento anormal de sua irmã e riu colocando a mão na boca. Tarde demais. Um garfo chocou-se com um prato. Depois, reinou o maior dos silêncios.
 Problema.  Assunta assumiu solita o filho de um turista italiano, que nunca mais deu notícias. Ela nem sabia o sobrenome do dito cujo. Onírico, que por princípio era um sonho, foi virando um baita pesadelo. Ainda havia um elemento complicador:  a falta de dinheiro em casa. Aos 10 anos, o garoto já era maior que as irmãs.  Mas o que gerava confusão, é que tinha um sestro. Quando ria, dava uma piscada forte com o olho esquerdo. A diretora da escola, acumulando reclamações das professoras, não aguentava mais Onírico.
       -Assunta! Mãezinha! seu filho precisa cair na real e com ele toda a sua feminina família, disse Dona Mafalda, a diretora, em mais uma chamada da genitora à escola, dando-lhe uma piscada com o olho direito.
       Assunta observou bem aquele abrir e fechar de olhos da Senhora Dona Diretora. Aquilo lhe pareceu zombaria de mau gosto, afinal, seu filho era quem tinha o cacoete da piscadela. Ela, a mãe, sabia  que era um tique nervoso e ficava deverasmente contrariada com o desentender dos outros, que não o conheciam bem. Ah, se o maledeto italiano estivesse aqui pra defender nosso filho! Seu rosto, então, ganhou uma expressão nunca vista antes. Eu não preciso de marido, dizia a si mesma, para se convencer de que isso era uma verdade. Mas ao ver o seu menino vulnerável, exposto à maldizência, ficava triste. Foi isso que Onírico leu em seus olhos, naquele instante. Aquele olhar marcou-o para sempre.
           A mãe, por um instante, recordou-se do primeiro encontro com o pai de Onírico. Fazia já 11 anos. Alta, seios fartos, derrière empinado e quadris largos. Sambava na avenida, quando o olhar estrangeiro de um jovem muito pálido a fez perder a ginga. Ele acompanhava a cadência da mulata e via o suor escorrer pelo seu rosto matreiro. Os lábios, vermelhos de batom, abriam-se num sorriso muito branco, convidando o italiano para acompanhá-la naquele momento em que se imaginava rainha.
             E o italiano fez-lhe o sonho. Assunta, a rainha do lar.
            Amaram-se nas noites de frio, foram confidentes. A diferença da cultura e da cor da pele provocava no casal uma atração que eles não podiam negar ou fingir que não existia. Agora, sem ele e após mais um dia de trabalho, ela se deitou, exausta. E desligando o abajur, mirou o teto torto da casa onde vivia com seus filhos.
          Imagens distorcidas e com muito brilho atormentaram, naquela noite, a mente de Assunta. Era um sonho incomum. Como em um filme do Kurosawa, mergulhava em alguma obra de Van Gogh. Era desesperador. Sem aviso e tão de repente como  uma chuva passageira, veio a calmaria, pássaros cantando enquanto ela caminhava com um semblante sereno por uma trilha repleta de vegetação. O corpo da dona de casa acalmou-se mais uma vez, sobre a cama de casal.
       No outro quarto, Onírico transpirava e de olhos fechados, digeria um sonho diferente. As cenas que a mãe vivenciava enquanto dormia, chegavam a ele com uma força impiedosa. O corpo magro do menino inquietava-se e a boca fechada anunciava que o momento era só dele. Pânico. Com a camisa empapada de suor, ele sentou-se na cama e tentou gritar. O medo de revelar os sonhos da mãe impediram que a voz saísse de pronto. Tentou ainda caminhar, sair dali. Mas os pés pareciam presos ao chão de cimento. Na garganta, um bolo estava formado. O sonho de Assunta se concretizara no corpo do filho.
    Entre  tremores e suores, adormeceu.
    No dia seguinte, uma tranqüilidade aparente pairava no lar. As meninas estavam na aula. Assunta, quieta em seu quarto, olhava o peito que levantava a cada respirar. Onírico entrara lentamente no aposento, deixando o ranger da porta atrapalhar o silêncio. Seu olhar não era o mesmo.
   Aproximando-se da mãe, balbuciou ternuras e sentou-se na cama. Tomou cuidado para não acordá-la.
 - Filho...
  A voz saiu sonolenta e, com os olhos entreabertos, tocou as têmporas do menino. Ele não transpirava como antes e a roupa havia secado.
  - Mãe, a senhora sonhou que hoje...
 Com a mão direita, ela rapidamente impediu que ele pronunciasse o seu tão secreto sonho. Não que houvesse algo condenável. Eram recortes do seu inconsciente, sua parte mais obscura. Tinha direito à privacidade. Ao sentir que ele havia entendido a mensagem, lentamente, afrouxou o lacre que havia feito com a mão na boca do filho e levantou-se para deixar que a luz do sol iluminasse o quarto. De costas para ele, sentiu vontade de abraçá-lo. E estava prestes a fazê-lo, quando ruídos estabanados anunciaram a chegada das três filhas.
     Sem pedir licença, entraram para beijar a mãe e ao verem o irmão acordado e quieto, entreolharam-se curiosas.
  -Uai, madrugou, maninho? – perguntou a estudante de Matemática já imaginando que a explicação seria simples. Uma leve insônia, uma dor nas costas... Não precisaria complicar.
  - Vai à missa com as beatas? – Riu a estudante de Letras puxando um banquinho para se sentar.
   Apenas a estudante de Jornalismo permitiu-se compartilhar com o irmão a solidão silenciosa. E ajoelhando-se na frente dele, envolveu-o num abraço cheio de cumplicidade.Ele nada disse. Apenas sabia que aquele instante fora antecipado pelo sonho da noite anterior.

   Apesar da tenra idade, Onírico compreendeu que adivinhar o íntimo dos outros era seu destino. Conformou-se, mesmo sem antever se tal responsabilidade era prêmio ou maldição.

 Texto alinhavado por Teresa A. e escrito por Vera V., Salviano S., Adriana G., Cláudia A., Nícolas, Ida F.

15 comentários:

  1. Uma estudava Matemática. A primogênita, Letras e a mais apegada ao irmão, Jornalismo. Assunto diferente não faltava em casa. Enredos de romances, de notícias trágicas e escândalos políticos misturavam-se aos comentários sobre aritmética, trigonometria e equações na hora do jantar.

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  2. Problema. Uma mulher tendo um filho aos 40 anos com um turista italiano e que nunca mais deu notícias.Nem sabia o sobrenome do dito cujo.O filho, Onírico, de sonho, virando um baita pesadelo a cada dia e na mesma velocidade da falta de dinheiro na casa, crescia e crescia. Aos 10 anos já era maior que todas as trez. Mais de um metro e sessenta de altura. Mas, o que dava confusão, é que tinha um sestro. Quando ria, dava uma piscada forte com o olho esquerdo. Ai a diretora da escola acumulando reclamações das professoras, não aguentava mais Onírico.

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  3. -Assunta! Mãezinha! seu filho precisa cair na real e com ele toda a sua feminina família, disse Dona Mafalda, a diretora, em mais uma chamada da genitora na escola, dando-lhe uma piscada com o olho direito.

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  4. Em casa, o filho ouvia uma de suas irmãs conversar com a mãe sobre um sonho muito bom que ela não recordava.
    Subitamente, o menino abandonou o cômodo onde estavam, e foi para seu quarto. Esperou alguns instantes até que irmã que lidava com números ficasse sozinha, e correu em sua direção. Tomou-lhe a mão e pediu que o levasse para um pequeno passeio. Ela seguia em linha reta quando Onírico pediu que ela dobrasse à esquerda.
    - Você não disse um pequeno passeio? Não podemos demorar muito, temos que chegar antes que o jantar esteja pronto.
    Um pequeno murmúrio do menino a convenceu, e assim ela foi. E lá estava, o mesmo campo florido dos sonhos dela...

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  5. A irmã, depois de uma visão um tanto perturbadora, andou involuntariamente mais alguns metros refletindo sobre o acontecido. Perguntava-se o porquê de não ter recordado uma imagem tão constante em suas caminhadas pelos arredores do bairro. O campo era lindo e simples.
    - Vamos, Onírico. Já abusamos da hora.
    Chegando a casa foram convidados pela voz suave de Assunta para sentarem à mesa. O jantar com todos reunidos na mesa era costumeiro e esperado. Onírico já não incomodava mais ninguém ali com seu sestro, mas em momentos de muito silêncio, como era no jantar, ele se culpava ingenuamente. Quando mais novo, Onírico não se dava conta de que aquele pequeno problema o diferenciava dos demais e até mesmo incomodava alguns. Agora com dez anos, Onírico se descobria vivendo em sociedade e cultivando uma angústia precoce. Todos ali sabiam que o garoto passava pela fase dos questionamentos e das incertezas.
    A irmã do passeio comia mais que vagarosamente quase que desejando a interrogação de alguém assuntando o que se passava. A futura jornalista da família percebeu o comportamento anormal de sua irmã e riu colocando a mão na boca. Tarde demais. Um garfo chocou-se com um prato. Reinou o maior dos silêncios.

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  6. A mãe, por um instante, recordou-se do primeiro encontro com o pai de Onírico. Fazia já 11 anos. Alta, seios fartos, 'derrière' empinado e quadris largos. Sambava na avenida, quando o olhar estrangeiro de um jovem muito pálido a fez perder a ginga. Ele acompanhava a cadência da mulata e via o suor escorrer pelo seu rosto matreiro. Os lábios, vermelhos de batom, abriam-se num sorriso muito branco, convidando o italiano para acompanhá-la naquele momento em que se imaginava rainha.

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  7. E o italiano fez-lhe o sonho. Assunta, a rainha do lar.

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  8. Amaram-se nas noites de frio, foram confidentes. A diferença da cultura e da cor da pele causava no casal uma atração que eles não podiam negar ou fingir que não existia. Agora, sem ele e após mais um dia de trabalho, ela deitou-se em sua cama, exausta. E desligando o abajur, mirou os olhos no teto torto da humilde casa onde vivia com seus filhos.
    *Imagens distorcidas e com muito brilho atormentavam a mente de Assunta, era um sonho incomum. Parecia que mergulhava em alguma obra de Van Gogh, era desesperador. Sem aviso e tão de repente como o fim de uma chuva passageira, veio a calmaria, pássaros cantando enquanto ela caminhava com um semblante sereno por uma trilha repleta de vegetação. O corpo da dona de casa acalmou-se mais uma vez sobre a cama de casal.

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  9. No outro quarto, Onírico transpirava e de olhos fechados, digeria um sonho diferente. As cenas que a mãe vivenciava enquanto dormia, chegavam a ele com uma força impiedosa. O corpo magro do menino inquietava-se e a boca fechada anunciava que o momento era só dele. Pânico. Com a camisa empapada de suor, ele sentou-se na cama e tentou gritar. O medo de revelar os sonhos da mãe impediram que a voz saísse de pronto. Tentou ainda caminhar, sair dali. Mas os pés pareciam presos ao chão de cimento. Na garganta, um bolo estava formado. O sonho de Assunta se concretizara no corpo do filho.

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  10. Oi, Teresa Magalhães!

    Seu blog é excelente. Vou faze link no meu franciscomigueldemoura.blobspot.com
    Quanto a participar da construção de texto, bem que gostaria, mas estou pensando que tiraria zero.
    Vou pensar ainda a vida para construir um texto especial.
    Por enquanto, fiquemos com a alegria de termos Vera em nossa companhia. Menina boa e inteligente. Dali sai uma contista famosa no futuro, já vi.
    Atenciosamente
    Francisco Miguel de Moura

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  11. No dia seguinte, uma tranqüilidade aparente pairava no lar. As meninas estavam na aula. Assunta, quieta em seu quarto, olhava o peito que levantava a cada respirar. Onírico entrara lentamente no aposento, deixando o ranger da porta atrapalhar o silêncio. Seu olhar não era o mesmo.

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  12. Aproximando-se da mãe, balbuciou ternuras e sentou-se na cama. Tomou cuidado para não acordá-la.
    - Filho...
    A voz saiu sonolenta e, com os olhos entreabertos, tocou as têmporas do menino. Ele não transpirava como antes e a roupa havia secado.
    - Mãe, a senhora sonhou que hoje...
    Com a mão direita, ela rapidamente impediu que ele pronunciasse o seu tão secreto sonho. Não que houvesse algo condenável. Eram recortes do seu inconsciente, sua parte mais obscura. Tinha direito à privacidade.
    Ao sentir que ele havia entendido a mensagem, lentamente, afrouxou o lacre que havia feito com a mão na boca do filho e levantou-se para deixar que a luz do sol iluminasse o quarto. De costas para ele, sentiu vontade de abraçá-lo. E estava prestes a fazê-lo, quando ruídos estabanados anunciaram a chegada das três filhas.
    Sem pedir licença, entraram para beijar a mãe e ao verem o irmão acordado e quieto, entreolharam-se curiosas.
    - Uai, madrugou, maninho? – perguntou a estudante de Matemática já imaginando que a explicação seria simples. Uma leve insônia, uma dor nas costas... Não precisaria complicar.
    - Vai à missa com as beatas? – Riu a estudante de Letras puxando um banquinho para se sentar.
    Apenas a estudante de Jornalismo permitiu-se compartilhar com o irmão a solidão silenciosa. E ajoelhando-se na frente dele, envolveu-o num abraço cheio de cumplicidade.
    Ele nada disse. Apenas sabia que aquele instante fora antecipado pelo sonho da noite anterior.

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