Nenúfares

Nenúfares
Monet

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Soca, pilão!


















Não era deslua. O satélite gritava no céu sua claridez. Era brilho e as lesmolisas touvas chamejaram sob as pedras. Luz tanta que machucava os olhos de Dona Branca. Longe, o prateado das águas pincelava a paisagem. Murmurejavam. Além da margem, mais adiante, avançando o pedregoso escarpado, o curral reunia a manada. As vaquinhas transluziam, pontilhando o lusco-fusco com a cor de cal. De repente, um teco-teco, em vôo arriscoso, roncou no céu agreste. Ave de bons augúrios - Seu Amaro. Ele veio resgatar a amada, que fazia farinha aleatória socando o pilão.

Sons alvacentos invadiam Dona Branca. Agitada, estupefazia a farinha, que subia e descia ao baque surdo do tronco tosco mal escavado. Tinha uma ema por lá, comendo cobras, que era o que ela fazia melhor. E tinha também uma capivara sem nome. Na densa mata a bordejar os pastos, jaguatiricas e macacos. Papagaios, periquitos, araras com os bicos altos, recurvados, aquietavam, no pouco-a-pouco.

Os roceiros que semearam a terra teriam o merecido sossego. O feijão borbulhando na panela bafejava o cheirinho gostoso da comida caseira. Crianças no beabá das cartilhas faziam a lição da Dona Rosa, professorinha rural. Letras bambas alcançavam a linha de cima, depois a linha debaixo, no caderno de caligrafia.

Lá fora, Dona Branca. Ainda. Esperava o Seu Amaro e socava a farinha para o tutu. De longe vinha um som de viola, metálico como o sorriso dele. Dedilhavam uma chorosa melodia cabocla. A melancolia do crepúsculo. O som-ímã atraiu os olhos de Branca. Tocou-a, corda estirada em vibrato. Trêmula, recebia Seu Amaro, que pousava devagar.

"Noite, dona Branca. Na lida até essa hora? Querendo, posso socar a mandioca". Era o que ouvia já de longe, mas as maritacas tardias se incumbiam de zelar pelo caos. Ela sentiu um torpor com cheiro de alecrim e gosto de ambrosia. Suspirou.

Amar, Amaro...

A negrura dos olhos dela furou a bruma farinhosa. Alumiados de doçura. Remexeu as cadeiras de aparência mansa. Tempestuosa, no íntimo. Mulher tímida disfarçava, nas roupas discretas, a fome de amar.

Mas Seu Amaro via, via tudo o que estava por vir. Via suas coxas úmidas, via o sangue pulsando forte em suas veias, via o coração desembestado, enquanto imitava o socar do almofariz com o peito arfando. Ele era o agrônomo, vinha sempre perguntar, perguntava e ouvia. Era o homem que escutava dona Branca. E por isso ela tremia como as varas de pescar que ele trazia, nos dias de folga, enquanto acompanhava o deslizar.

No ir-e-vir, vir-e-ir. Tronco, gral, farinha, olhos, quadris, seios arfantes. Seu Amaro foi ficando zonzo, foi-se achegando, todo doçura campestre. Tão perto que podia respirar o hálito febril de Dona Branca. Desmodo. Olhos, quadris, sangue, braços, a brancura dela, seu olhos tão negros....Ele não pôde. Ele pôde. Respirou fundo.

Eram perguntas descabidas para o momento, como andava a calda do agrotóxico? E todos usavam as luvas? E iriam mecanizar a colheita da soja e do milho ou nada disso? Então ela encostou de leve a perna úmida no pilão e depois a outra, sem perder de vista a atenção dele descendo até suas ancas.

Uma lembrança atravessou silenciosa entre os dois. O ex-marido, memória descorada pelos anos, estacou no terreiro antigo, encarando-a. Podia ver sua palidez moribunda, a mortalha branca assombrando-a. Pensou em correr, fugir dali. A memória das crianças pequenas, do companheiro tão bom, na lida com o roçado, sufocou-a. Precisava desviar-se do desejo urgente.

Porém.

Embaraçou-se no faz-que-fazia farinha, esbarrou no pé do agrônomo. Cambaleante. ‘Desculpa o mau jeito, Seu Amaro’.Em meio à singelez tanta pureza, Seu Amaro arresistido arrebatou Dona Branca. A noite ficou pequeninha para tanto amar.

Teresa Magalhães

4 comentários:

  1. Ler e reler. Ter contato com as letras, palavras, frases. E assim gradativamente, perceber e encantar-se com seu estilo.
    Fácil.
    Em algumas cenas, eu não sabia o que era realidade, e o que era devaneio. Não vi o limite.
    Difícil.
    Isso é coisa de quem tem muita habilidade com as palavras.
    Você.

    Carinho.

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  2. Ah, mas você terminou o poema na melhor parte! rs
    Eu me recuso a colocar qualquer adjetivo nesse conto. Me recuso. Não é charme, tampouco frescura. Você me entende, não é? huahauahua

    Um beijo! Faça mais desses, dezenas, centenas!

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