Nenúfares

Nenúfares
Monet

domingo, 8 de agosto de 2010

Camélia

                                        
Senhoritas de Avignon- Pablo Picasso

Era mais uma corruptela que cidade. Faltosa e chuvarenta. O calor molhado e vermelho encharcava os pés dos passantes e deixava as fisionomias viscosas. O espírito atolado na lama. As casas simples, com janelas de madeira em cores pálidas, sarapintavam o terreno íngreme. Ali não havia organização urbana, as ruelas nasceram sem planejamento. Ora as construções se agrupavam, ora um grande hiato as separava. O lugarejo sobrevivia por uma razão exclusiva: era o ponto derradeiro de uma linha de trem que cortava o Estado. Quem não se aboletasse por aquelas bandas, teria que embarcar na jardineira do Pitelli, compartilhando o veículo com porcos e galinhas. Estrada de terra batida, repleta de buracos, levava os viajantes aos lugares vizinhos. A linha de trem era o divisor de águas entre o que nomeavam moças de família e as meninas de frete. O poder econômico acompanhava a topografia montanhosa. Lugares altos. Mansões. Na cidade baixa, no fim da Rua Nonhô do Livramento, ficava o lupanar. As mulheres-damas se reuniam ali e esperavam por melhores dias. Para a sobrevida, entresonhavam com os encontros, cujo interesse maior eram as escapadelas furtivas dos senhores de dinheiro.
A moradia com uma tímida varanda, pintada de azul celeste, parecia chorar. A tinta escorrida desenhava listas verticais. A dona, Maria dos Prazeres, era uma flor murcha. Encarquilhada. Os cabelos ralos mostravam o couro cabeludo, como se tivessem caído em tufos, vítima de alguma doença terrível. A boca sempre pintada de vermelho-rubro, tombada nas laterais, deixava escorrer a cor dos lábios trincados pelo tempo. Melancólica. Da beleza perdida, sobrou a casa, prêmio recebido de um homem que a amou de verdade. Mas isso fazia muito tempo. Abaixo dela, em idade, e de sua inteira confiança, havia Orinéia. Vista de costas, quando lavava a calçada, era confundida com uma garotinha de cintura fina e quadris apetitosos, porém o rosto tinha sinais capazes de afastar qualquer cristão. O nariz torto, herança de uma antiga surra. Os olhos bugalhudos, como se fosse fossem saltar do rosto, acomodavam-se em duas acentuadas bolsas de gordura e resumiam uma tristeza embaraçosa. A pele seca e amarfanhada. Trabalhadeira, cuidava da limpeza, em troca de teto e comida. Não era mais desejada pelos homens, o que representava um lenitivo: cansou de ser amada sem amor. Excluindo as duas vetustas, a juventude sorria na Morada Azul. A mais nova - Camélia - tinha 12 anos. Linda, linda. Conservava a virgindade à moda de quem guarda um tesouro.
Um dia veio a notícia: Maria dos Prazeres morreu vítima de infarto fulminante. Foi encontrada na cama, com as mãos enroladas em um rosário de pedrinhas verdes. A Morada Azul se inundou de curiosos. Não perdi a oportunidade. Queria ver por dentro como viviam as andorinhas. Não havia os cortinados de veludo vermelho, nem os tapetes fofos, nem as colchas de cetim que eu inventava em minhas fantasias. O ambiente nu em adereços, paredes descascadas, lençóis grosseiros. As mulheres, rostos borrados pelas lágrimas, caricaturavam as máscaras teatrais. Reproduziam o mesmo tipo de maquiagem branca, olhos pintados com lápis preto e batom vermelho. Os vestidos decotados afrontavam a morte. Feitas em série, na indústria do corpo. Menos Camélia. Destacava-se de tudo que eu já tinha visto nos meus parcos 13 anos. Parecia um anjo de olhos negros e cabelos cacheados que ensolaravam o tempo chuvoso. Os seios apontavam tímidos sob o discreto vestido de algodão. Os pés quase nus, sob as duas tirinhas da sandália, mostravam os dedos longos e afilados com um anelzinho de contas brilhantes. Servia café. Minhas mãos tremeram quando peguei a xícara. Elas e todo meu corpo acanhado me denunciaram. Abaixei os olhos para dissimular o rubor de vergonha e encantamento que a beleza da menina provocou em mim. Mergulhei-os na xícara, sem coragem de encará-la. Quando for embora daqui, vou me estapear por ser tão bobo. Mas o que eu pensei ser demérito, foi recompensa para a minha masculinidade. Para a garota, eu também era único. Não tinha o olhar cobiçoso dos homens que lhe causavam repugnância. Escondido em minha timidez, demorei a perceber isso.
A tarde escorreu entre lágrimas. O céu do cemitério encharcou os cabelos tintos das mariposas em delgado vôo vespertino. Baixaram o caixão. Levantou-se a voz grave de um homem, o qual fez um discurso barroco sobre o triunfo da morte. E a jovem Camélia, luzidia e perfumosa, celebrava a vida, como uma nesga de sol desafiando o dia melancólico. A leveza adolescente, deslizando entre as sepulturas, ignorava as idéias mórbidas que faziam eco no íntimo dos mais velhos. Antes de ir embora, aproximou-se de mim e deixou cair um bilhetinho com as letras borradas: - Espero você amanhã às 5 da tarde. Olhei para os lados, para trás, surpreso e ressabiado, antes de pegar o papel. Ela partiu, em tempo de voltar a cabeça. Num gesto lento e muito feminino, capturou-me de vez com um sorriso de cumplicidade. Camélia, a mais pura das mulheres, criada no meio das marafaias, foi meu primeiro amor.


Teresa Magalhães

3 comentários:

  1. Vocabulário deslumbrante e um imenso talento pra escrita. Vc me surpreende a cada post.
    Não fique tanto tempo sem postar.^^

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  2. "Chuvarenta, "sarapintavam", "entresonhava",
    "amarfanhada". Eu poderia ficar aqui citando as palavras que enchem meus olhos. Poderia também dizer que o seu eu-lírico masculino escreve muito bem. Acho que ele pede emprestado o seu talento.
    Mas o que me fascina mesmo é o ritmo de sua narrativa. As palavras vão puxando uma e outra e quando vejo, já cheguei ao fim. Parece rápido, por não ser enfadonho. E parece ainda mais eterno, por saber que elas ficarão em mim.

    Beijo.

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  3. Tem um monte de palavras e expressões que realmente arrancam algum sorriso. A última, mais estranha, porém engraçada, 'marafaias', e 'meninas de frete'. Tão interessante esses sinônimos, só você mesmo pra encontrar palavras que parecem difíceis, pouco ou nunca vistas, mas que, só de lerem, dá pra perceber o sentido delas.

    beijos!

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