Nenúfares

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Monet

sábado, 29 de maio de 2010

Gerundismo

"Não pude estar comparecendo"

Pasquale Cipro Neto

"É de manhã, vem o sol, mas os pingos da chuva que ontem caiu ainda estão a brilhar, ainda estão a dançar, ao vento alegre que me traz esta canção..." Os mais velhos e os jovens de bom gosto certamente conhecem. É o começo de "Estrada do sol", música de Tom Jobim e letra de Dolores Duran. As seqüências "estão a brilhar" e "estão a dançar" não são comuns na fala cotidiana do Brasil. Por aqui o que se usa mesmo é "estão brilhando" e "estão dançando".
Já em Portugal (principalmente de Lisboa até o Norte) essa estrutura (preposição "a" + infinitivo) é mais do que comum. Incomum é o gerúndio. Um diretor da TV Cultura me disse que esteve em Portugal quando as novelas brasileiras começaram a chegar lá e viu nas ruas - acredite se quiser - uma passeata de protesto contra o gerúndio, abundante nas novelas brasileiras. Temiam nossos irmãos portugueses que isso "pegasse". Essas estruturas, no fundo, são equivalentes. E não adianta esperar que brasileiros passem a dizer "ela está a dormir", nem que portugueses digam "ela está dormindo".
O fato é que de repente surgiu no Brasil a esquisita mania de usar o verbo estar seguido de outro verbo no gerúndio. Essa dupla na verdade é um trio, porque sempre vem outro verbo. Algo como "o economista vai estar realizando uma série de palestras".
O que já poderia ser dito com apenas um verbo ("realizará"), ou com dois ("vai realizar"), acaba se transformando numa perífrase (rodeio de palavras) enfadonha. O grande problema é que isso parece chique, tem uma cara de coisa da língua formal, culta, mas não passa de uma grande chatice.
Uma amiga telefonou para a central de atendimento a clientes de um cartão de crédito. Depois de intermináveis "a gente vai estar tentando resolver o seu problema", "a senhora vai estar recebendo um extrato", "uma funcionária vai estar verificando", "a gente vai estar mandando uma cópia para a senhora", a funcionária perguntou: "A senhora pode estar enviando uma cópia do último pagamento?". Irônica, mordaz, minha amiga respondeu: "Estar enviando eu não posso, mas enviar eu posso". Inútil. Pelo que disse em seguida, parece que a funcionária não entendeu a ironia.
Há alguns dias, um jogador do Santos deu entrevista à rádio Jovem Pan. Trata-se de rapaz letrado, bem-falante, de classe média alta, que estudou em bons colégios. Feliz com sua atuação, o jovem atleta ofereceu os gols à mãe. "Mande-lhe uma mensagem", propôs o radialista. O jogador declarou seu amor à genitora e disse: "Desculpe, mãe. Seu aniversário foi ontem, mas eu não pude estar comparecendo à festa".
"Não pude estar comparecendo" é de lascar. Que tal "Não pude comparecer"? Simples e indolor, não? É isso. Cuidado com modismos lingüísticos. Esse cacoete já passou da fala e já freqüenta a língua escrita, com ares de coisa boa. Fuja disso!

Um comentário:

  1. Sinto um conforto agradável ao saber que há pessoas que militam pelo uso correto de nossa tão bela língua portuguesa. É evidente que todos nós cometemos erros, não espero que um dia todos tenham uma gramática expositiva e a leiam todos os dias. Também não espero que usem mesóclise o tempo todo. Enfim... Tenho o péssimo costume de fazer divagações impróprias em locas ainda mais impróprios. Parabéns pela iniciativa, moça.

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